domingo, 9 de setembro de 2012

Amor comunitário


Não, não era aquele ar de “árabe de meia tigela” que despertou aquele encantamento coletivo depois do trabalho artístico feito em conjunto. Afinal, tinha ascendência espanhola. Bem, tinha um ar latino ligeiramente irresistível. E depois daquela parceria... Parecia bom demais para ser verdade: tinha seu pezinho na arte – contribuiu lindamente com o figurino e a música, mas como nós mortais, mantinha-se com as raízes na vidinha cotidiana que nos atropela – no caso, o trabalho meio pé no chão demais, que paga as contas que chegam religiosamente em seus vencimentos, sem piedade. Os papos sobre arte varavam madrugada – como é irresistível ouvir quem gosta demais ou entende muito de qualquer assunto, mas essa é uma típica opinião de “fofoqueira profissional” – que adora dar nova roupagem para as belas histórias e passar adiante, com a devida proteção das origens. Ainda fazia um trabalho voluntário admirável, desses que dá vontade de largar tudo e embarcar rumo à África como missionária. Também praticava triátlon. E tinha gatinhos! Como se não bastasse, jogava no mesmo time delas, o dos que estavam um tanto quanto traumatizados com longos relacionamentos e tinham tendência a reinventar as relações nas próximas oportunidades. Enfim, uma raridade.
O trabalho coletivo saiu exatamente como previsto – a mais ansiosa se viu do lado de cá do balcão, sempre tão crítica, ouvindo as observações, nem sempre construtivas, de uma bancada mais cruel do que as dos famigerados TCCs (Trabalho de Conclusão de Curso) – antes tivesse passado por elas, que dentro das palavras ela estava mais em casa, do que dependendo de terceiros e precisando descentralizar as tarefas.
O quarteto que preparou o trabalho prometeu uma saída para comemorar, fosse qual fosse a nota, mas o reencontro de todos nunca veio, que a agenda dos hiperativos é mais disputada que a de político em véspera de eleição. Duas desta turminha insistiram “sem querer querendo” naquela predileção. E numa noite sem álcool, regada somente a ideologias socialistas amorosas, borbardearam o celular do disputado rapaz, mirabolando estrategicamente e com antecedência, torpedos inteligentes o suficiente para fazê-lo morder a isca, que não mandariam nada explícito, óbvio... Eram mulheres densas e faziam jus a isso.
“Mulheres woodyallianas sonham com curta de amor comunitário e desconfiam que teria o olhar enquadrado para filmá-las” – ele, que tinha escolhido o jazz dos longas favoritos deste cineasta para a apresentação, saberia de bate-pronto quem escrevia, pensaram elas. Mas que nada! Ele respondeu para o celular novo de uma delas: “Divertido...Mas quem é”?
Não foram muito criativas na resposta: “Adivinhe quem é de toda sua galeria de inspirações”? Ele ainda chutou, mas foi bola na trave: “Clarice”? As duas arquitetaram a resposta desta vez “Nada de ‘A Hora da Estrela’, estamos mais para Pina Bausch e...talvez a bonequinha de Amelie Poulain”? Todas obras e filmes já debatidos por todos, em noites regadas a vinho de quinta categoria.
O retorno dele foi mais promissor: “De repente... Não tenho padrões”. Uma delas, a mais espoleta e de casa nova, deu praticamente um “cheque mate”: “Então seja bem vindo ao endereço... Pizza com vinho”? E correu para o banho e todo o ritual feminino de “embonecar” uma mulher. A outra já desconfiou que estava promissor demais para acabar como no romance de Simone e Sartre.
Bingo! A resposta foi uma marcha a ré: “Estou muito longe... Se o convite continuar válido para durante a semana”... A mais realista já emendou: “Como somos pedestres típicas, digo, pé rapadas, o ‘finde’ é mais tranqüilo... Mas vamos combinar – só não vale falar e não se encontrar como alguns cariocas”. Lá para as tantas, o moço mudou de ideia: “vinho com artistas... Tô quase mudando meu destino de hoje”.
A que estava uma boneca, mas sabia que o restrito horário dos ônibus faria com que a outra zarpasse logo menos, não resistiu: “Amelie está virando abóbora e Pina, bela adormecida... Mais cedo por conta de condução... Lembra”? A amiga “pé atrás” voltou para casa, mas a outra atendeu o curioso no dia seguinte e quebrou o mistério, confirmando quem era a proprietária do aparelho. Ela ainda mandou outros torpedos, mas ele acabou cortando o barato dela.
Já a outra, cinéfila de carteirinha, tirou uma foto do cartaz de um longa e mandou o convite para assistirem pelo celular, terminando com “beijos onde você quiser”, mas soube mais tarde pela melhor amiga dele que fotos não chegavam ao aparelho do rapaz. Semanas mais tarde, os dois ainda combinaram de andar no parque num sábado, mas em cima da hora ele pediu desculpas pelo cansaço, desmarcou e perguntou se ela se chatearia. Como esta perde o amigo, mas não a piada, se saiu com esta “Paciência ? Espero que nos reencontremos ainda nesta encarnação”. Depois, não resistiu e corrigiu: “pensando bem, só perdôo com jantar à luz de velas” e ele, no muro: “haha... Está certa”. Sem ter ideia se aquela era uma resposta promissora, comprovou sua veia de sarrista incorrigível: “Fique tranquilo que eu não mordo, só com segundas intenções, mas não tem reclamação no Procon”. Ficou no vácuo. E claro, querendo descobrir onde encontrar um “workshop intensivo de entendimento da alma masculina”.
É, a prima da artista para a qual ele não “cortou o barato”, mas também não atendeu mais as ligações tinha razão: “relacionamento hetero é como jogo de pique e pega. Só mando um torpedo ‘onde’? pra começar o jogo quando estou muito animada”. Mas ela não combinava com este estilo. Gostava das mensagens mais brincalhões ou metidos a intelectual. E numa manhã de absoluta certeza que concluiu - depois de meia dúzia de namoros, só podia bancar o filósofo: “tudo que sei, é que nada sei”, teve um insight providencial: ELE FUMA!
Tinham saído tantas vezes, tinha esquecido as escapadas dele em direção às calçadas ao ar livre pra saciar o vício. “Que alívio”, suspirou. “Se tudo desandar, faço como a raposa da história em que ela desdenha as uvas que não alcança: ‘eu nem queria um namorado cabeça, charmoso, voluntário e atleta mesmo’”.

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