quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Não reparei se ela tem gogó

Há uma semana me prensaram na Santo Amaro por um dinheiro que não tinha. Um dos ladrões não consigo lembrar, pois foi no momento em que gritavam "olha para baixo". Pouco depois a dupla se revelou ligeiramente bipolar, já que depois mandavam "olha para mim". Deve ter sido no momento em que cismaram com a passagem da polícia e eu estava dando na cara chorando por não ter o dinheiro do assalto.
O marcante é que um dos assaltantes era traveca. Qual a maneira politicamente correta de chamá-la? Travesti? Cismei que tinha raiva por eu ter o que não tinha, pois foi me xingando dumas barbaridades que estava longe de fazer jus. Fiquei lá arreganhando a carteira para provar que não tinha um real e ainda pedi desculpas:
- Sinto muito, sou atriz.
Tenho uma coleção de assaltos atípicos. Noutra ocasião, na Vila Monumento, ele pediu licença, por favor, desculpa... Desta vez, no final, eu sentia quase um desculpa no tom da voz dela ao final:
- A gente aí levando o que você levou o mês para conseguir... É o crack, depois da polícia não temos o que perder, sabe? - ela me desejou "ir com Deus" nos finalmentes...
Quis ser simpática e ofereci os aneis, mas recusou. Pode ser o palpite duma amiga: dedos grossos. Mas era a única coisa que valia algum dimdim. Me fez dar brincos e colar de madeira, da feirinha da Liberdade. Será possível que isso renda uma pedra?
O mais surreal foi ela tirar meus óculos, perguntar se era de grau... Nessas horas dá vontade de responder "virada no Jiraia":
- Não, uso com lente transparente para pagar de intelectual.
Voltaria precisando de cão guia? Experimentou, cismou que tinha grau demais e devolveu. Quando começou a tirar os chinelos, imaginei que trocaríamos pela rasteirinha e eu trabalharia de Havaianas no dia seguinte, já que dormiria na minha amiga.
Quando ela dava bronca que meu choro estava dando bandeira, engolia as lágrimas e ainda negociava:
- Imagine, tem colega que anda chorando um ao lado do outro, nornal.
Aí quis andar com minha bolsa. Fiquei pedindo remédio, bilhete único e querendo de volta minha lição de francês que levei três semanas para estudar. A gente se apega a cada besteirada nestas horas! Quando ela dizia que me furaria se chamasse polícia ou gritasse, que tinha ajudante, marcou meu rosto, me questionava se chegaria à portaria da minha amiga vazando. E a gente lá tem noção de futuro?
A estranheza era que não estivesse de salto quinze como aquelas que meu colegas juram não ser homem na Indianópolis. Não reparei se ainda tinha gogó. São tão pouco convincentes sem dinheiro, pobrezinhas! Quando finalmente me pendurei na portaria do prédio da minha amiga e não conseguia falar direito, o porteiro achou estranho que estivesse dando bijuteria pra ela, disse que podia fazer um sinal indicando assalto. Justo eu, exageradamente expressiva? Aí sim daria bandeira e provocaria a fúria da traveca descompensada...
Minha amiga aproveitou para provar à filha que tinha motivo pra agilizar quando estavam a pé pelo Brooklin. Nome de bairro negro nos Estados Unidos. Racismo? Coincidência macabra. Questionou se não dava para correr. Perdi a oportunidade de provar que a ironia é minha segunda língua "ah sim, mas achei que seria uma experiência antropológica ser assaltada por alguém de voz grossa tentando imitar nossas curvas". Na casa dela aliviei tanto o que a traveca mandou engolir que no dia seguinte um olho estava mais inchado que o outro, parecia que tinham descido o sarrafo em mim. Não me animei a dar queixa. Estou decidindo o que me constrange mais: a fulana me reencontrar com seus auxiliares ou a má vontade e atendimento sofrível das delegacias. Não por acaso tenho saído cada vez menos agora a pé. Temos sido tomadas pelo cagaço dos craqueiros e sua falta de bom senso, esparramados cidade afora, agora que parecem fugir da internação compulsiva e higienização central. Isso lá tem salvação minha gente?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Todas as Vezes em que Quisemos Desistir

Todas as Vezes em que Quisemos Desistir
Entendemos o sonho cênico na manhã seguinte
Retomamos o papel a toque de caixa
Perguntamos por onde entramos
Mas não quisemos saber por onde saímos
Nem apressar o fim da cena
Todas as Vezes em que Quisemos Desistir
Compreendemos quem entregou os pontos
com menos dores
Por enxergar à nossa frente
Quem mais machucado seguiu adiante
Todas as Vezes em que Quisemos Desistir
Ouvimos o som do trem irrefreável
E seu refrão pilhando no cangote:
“tem gente atrás! Tem gente atrás”
Todas as Vezes em que Quisemos Desistir
Paramos para ver a mesma flor
De outro ângulo
Redescodrimos um sonho empoeirado
E parimos um novo projeto
Todas as Vezes em que Quisemos Desistir
Renovamos o presente de agora
Nos apaziguamos com o imprevisto de ontem
E entregamos o mistério irresistível do amanhã

Ao enigmático dia seguinte

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Dor a passeio

Na última noite
levei minha dor para passear
Saímos ela ainda era leve
mas à espera do ônibus
seu peso começou a incomodar
Feito criança com sono
não queria ver gente
pedia por cama
e luzes apagadas
Mas o lado sagitariano festeiro
desconsiderou esse anseio
No meio do caminho
a dor apelou ao medo
como chamado de volta ao ninho
Só que livre das lágrimas
teimei cruzando a cidade
Perto de outro berço
pra minha dor aninhar
Xingo e ameaça
choro tive que sustar
A dor que já estava seca
lavou noite
molhou mesa e toalha
inchou olho
embargou voz
Perdõa dor menina
prometo levar cedo pra cama
cantar pra te ninar
quando não quiser comigo andar