domingo, 16 de setembro de 2012

O Homem que Não Dorme

Ele é porteiro num trabalho, segurança em outros dois, marido de aluguel, dá aula de matemática particular, mas... Em uma semana, dorme sete horas. Diz que sono é coisa de mulher, que precisa do "de beleza". Cuida da filha, vai ao Sesc, deve namorar, mas não precisa dessas pescadas prolongadas dos pobres mortais. Foi objeto de estudo de dois programas públicos de tratamento de sono. Tem metabolismo oito vezes mais acelerado do que o normal.
Deve ter curiosidade como é acordar lembrando do sonho. Roncar. Se irritar com passarinho quatro horas da manhã na janela. Barulho de funk quando quer descansar. TV que não deixa pregar os olhos, já que para o homem que não precisa dormir, nada disso incomoda.
É quase o homem que vive na região do sol da meia noite, país sem luz por um período do tempo. Mas passa por isso no Brasil mesmo. E com os mais chegados ainda deve tirar sarro: "dormir é para os fracos".
Os dias devem ser compridos para o o homem que não dorme. A família, os amigos, colegas e parentes precisando ressonar como a maioria da humanidade, de 24 em 24 horas, em média por oito horas. A TV, ainda que por assinatura, deve entendiar depois de um tempo, que mesmo pagando o repeteco é garantido.
Perde-se a noção dos dias e horas sem precisar dormir. Relógio torna-se um acessório fundamental. Precisa tomar cuidado para não acordar os outros com torpedos ou ligações. Esquece da vida emendando uma coisa na outra. Não lembra que mulher, filho, tem hora e fecham para balanço como quase todos.
O homem que não dorme estranha a colega que lamenta não precisar consertar seu sono, pois é uma nova mulher desde que começou a descansar de verdade, dividir sonhos com amigos e parar de bater o carro. Ele não. Abstraiu. Afinal, como diria o Tancredo, para descansar teremos a eternidade. Ou a lá Fassbinder "quando morrer descanso".
Ele também tem que se monitorar para não começar a pendurar quadro ou fazer barulho de madrugada. E pensar que luz de dia deve irritar quem precisa dormir à noite. Não é o caso do homem que não dorme, que nem uma hora por dia tem precisado.

Condenada à bota e à melissinha

Quando diz que tem os pés meio índios, só ficam bem descalços, ninguém leva a sério. Ganhou sapatos lindos, que tem tia e prima de bom gosto, generosas e consumistas, mas são todos "paisagem": tem que ir no colo e voltar no carro. Quando não fazem bolhas nas laterais, cansam na sola. Então terá que para todo o sempre usar "melissinha genérica" no calor e bota no inverno, que são os que não fritam o pezinho. O pior é que o plástico, uma das únicas coisas a não arrancar pedaço em dias quentes, dá o maior chulé. Tudo o que queria era um pé que socializasse com qualquer bico quadrado, courino, salto largo, bico arredondado... Enfim! Esta é a saga dos pés "tupi".

domingo, 9 de setembro de 2012

Paixão budista

As avós têm razão. Não adianta apressar o curso do rio, ele segue seu próprio ritmo. Numa cadência própria, à revelia de qualquer desejo inquieto. Uma lembrancinha com ar indígena passou os últimos dois anos aguardando comigo o momento do curso do rio vir a meu favor. Este presente e um gosto de surpresa e expectativa. Mensagens meio perdidas pela impessoalidade da Internet. Reencontros desencontrados. E anos depois, a música mexe com as inquietações mais fundas, rende debates, nova peça, discussões que poderiam varar a madrugada, não fosse a escassez da condução pública. Posições libertárias tão similares. A concordância com o mesmo mestre indiano. Cafuné e abraço. Dedos que dançam com cabelos. O primo está certo: depois que fez o que tinha que ser feito, deixa fazer a curva do rio, se tiver que voltar, retornará. É lugar comum, mas verdadeiro: quando menos se espera. De novo o gosto, já era de se esperar, mas... Renovado. O aconchego. Pela primeira vez, olhar o movimento que provoca em minha energia e entender: a paixão é praticamente por mim mesma. Não ver muita diferença entre um toque ou outro, mas entender: é a inteligência zodiacamente previsível que embriaga. Agitar trabalho em conjunto. Filme antigo, com novas cores. Ligeiro distanciamento. Como quem entende de cinema e vai à sala escura analisando luz e som, perde-se um pouco a graça, mas fica-se menos refém do sentimento, tão familiar e ao mesmo tempo tão novo. Depois de tanta prosa eletrônica, bateu na retina diferente. Uma visão menos nublada, nem tão adolescente, de óculos mais limpos. Mas nem por isso, menos interessada. Reencontro adiado, gosto de criança com o pirulito tomado da boca. A cor, o som, são padrões repetitivos. Eternamente irresistíveis. Sinceridade o suficiente para não perder os pés do chão, não disparar em vertigem convulsiva. E ainda assim, experimentar a saudade mais clichê do mundo. Como cantaria Legião Urbana: "...vamos fazer um filme"? Vontade de pedir para ouvir as cordas em vibração íntima e intransferível. A incerteza sem pressa.

Alice às Avessas


No momento mais história em quadrinhos pós-moderna da minha vida, desconstruo sonhos de fada. Faz frio e no aguardado reencontro com o “homem da minha vida das últimas três semanas”, preferia que ele me pegasse de carro aqui na porta de casa. Mas somos de carne e osso, sofremos os mesmos apertos, na melhor das hipóteses ele me pegaria de moto, mas hoje é o metrô que nos aproxima.
Também escolheria um filme, peça ou show de encher os olhos e o coração, jantaria fora, voltaria discutindo enredo ou repertório e terminaríamos a noite num queijo e vinho de se comer gemendo. Mas somos mortais, fomos atingidos pela última longa e tenebrosa crise e faremos “balada doméstica” do DVD, comidinha e edredom, mesmo odiando Big Brother.
Ainda nos livrando dos estereótipos Disney e Hoolywood, é provável que fizéssemos ajustezinhos mínimos um no outro. Mas temos raízes e asas e nossas delícias são cotidianas: dizer que não podemos cuidar, mas lembrar o outro para tomar o remédio, afirmar que não podemos dar mais do que bons momentos fugazes e ligar para perguntar como foi o ansiado teste para “o emprego dos sonhos”, se entrincheirar atrás dos medos e traumas na teoria, mas na prática dormir de conchinha.
Meu professor maníaco pelo romantismo tem razão: somos invariavelmente sonhadores e idealistas. Mas é ao teu lado que quero ficar hoje, em silêncio, mesmo sendo verborrágica. É este momento completo e inteiro que me basta por este instante mágico. Nunca tive talento para Cinderela mesmo. E olha que como falastrona incorrigível, sou uma contadora de histórias de mão cheia!

Amor comunitário


Não, não era aquele ar de “árabe de meia tigela” que despertou aquele encantamento coletivo depois do trabalho artístico feito em conjunto. Afinal, tinha ascendência espanhola. Bem, tinha um ar latino ligeiramente irresistível. E depois daquela parceria... Parecia bom demais para ser verdade: tinha seu pezinho na arte – contribuiu lindamente com o figurino e a música, mas como nós mortais, mantinha-se com as raízes na vidinha cotidiana que nos atropela – no caso, o trabalho meio pé no chão demais, que paga as contas que chegam religiosamente em seus vencimentos, sem piedade. Os papos sobre arte varavam madrugada – como é irresistível ouvir quem gosta demais ou entende muito de qualquer assunto, mas essa é uma típica opinião de “fofoqueira profissional” – que adora dar nova roupagem para as belas histórias e passar adiante, com a devida proteção das origens. Ainda fazia um trabalho voluntário admirável, desses que dá vontade de largar tudo e embarcar rumo à África como missionária. Também praticava triátlon. E tinha gatinhos! Como se não bastasse, jogava no mesmo time delas, o dos que estavam um tanto quanto traumatizados com longos relacionamentos e tinham tendência a reinventar as relações nas próximas oportunidades. Enfim, uma raridade.
O trabalho coletivo saiu exatamente como previsto – a mais ansiosa se viu do lado de cá do balcão, sempre tão crítica, ouvindo as observações, nem sempre construtivas, de uma bancada mais cruel do que as dos famigerados TCCs (Trabalho de Conclusão de Curso) – antes tivesse passado por elas, que dentro das palavras ela estava mais em casa, do que dependendo de terceiros e precisando descentralizar as tarefas.
O quarteto que preparou o trabalho prometeu uma saída para comemorar, fosse qual fosse a nota, mas o reencontro de todos nunca veio, que a agenda dos hiperativos é mais disputada que a de político em véspera de eleição. Duas desta turminha insistiram “sem querer querendo” naquela predileção. E numa noite sem álcool, regada somente a ideologias socialistas amorosas, borbardearam o celular do disputado rapaz, mirabolando estrategicamente e com antecedência, torpedos inteligentes o suficiente para fazê-lo morder a isca, que não mandariam nada explícito, óbvio... Eram mulheres densas e faziam jus a isso.
“Mulheres woodyallianas sonham com curta de amor comunitário e desconfiam que teria o olhar enquadrado para filmá-las” – ele, que tinha escolhido o jazz dos longas favoritos deste cineasta para a apresentação, saberia de bate-pronto quem escrevia, pensaram elas. Mas que nada! Ele respondeu para o celular novo de uma delas: “Divertido...Mas quem é”?
Não foram muito criativas na resposta: “Adivinhe quem é de toda sua galeria de inspirações”? Ele ainda chutou, mas foi bola na trave: “Clarice”? As duas arquitetaram a resposta desta vez “Nada de ‘A Hora da Estrela’, estamos mais para Pina Bausch e...talvez a bonequinha de Amelie Poulain”? Todas obras e filmes já debatidos por todos, em noites regadas a vinho de quinta categoria.
O retorno dele foi mais promissor: “De repente... Não tenho padrões”. Uma delas, a mais espoleta e de casa nova, deu praticamente um “cheque mate”: “Então seja bem vindo ao endereço... Pizza com vinho”? E correu para o banho e todo o ritual feminino de “embonecar” uma mulher. A outra já desconfiou que estava promissor demais para acabar como no romance de Simone e Sartre.
Bingo! A resposta foi uma marcha a ré: “Estou muito longe... Se o convite continuar válido para durante a semana”... A mais realista já emendou: “Como somos pedestres típicas, digo, pé rapadas, o ‘finde’ é mais tranqüilo... Mas vamos combinar – só não vale falar e não se encontrar como alguns cariocas”. Lá para as tantas, o moço mudou de ideia: “vinho com artistas... Tô quase mudando meu destino de hoje”.
A que estava uma boneca, mas sabia que o restrito horário dos ônibus faria com que a outra zarpasse logo menos, não resistiu: “Amelie está virando abóbora e Pina, bela adormecida... Mais cedo por conta de condução... Lembra”? A amiga “pé atrás” voltou para casa, mas a outra atendeu o curioso no dia seguinte e quebrou o mistério, confirmando quem era a proprietária do aparelho. Ela ainda mandou outros torpedos, mas ele acabou cortando o barato dela.
Já a outra, cinéfila de carteirinha, tirou uma foto do cartaz de um longa e mandou o convite para assistirem pelo celular, terminando com “beijos onde você quiser”, mas soube mais tarde pela melhor amiga dele que fotos não chegavam ao aparelho do rapaz. Semanas mais tarde, os dois ainda combinaram de andar no parque num sábado, mas em cima da hora ele pediu desculpas pelo cansaço, desmarcou e perguntou se ela se chatearia. Como esta perde o amigo, mas não a piada, se saiu com esta “Paciência ? Espero que nos reencontremos ainda nesta encarnação”. Depois, não resistiu e corrigiu: “pensando bem, só perdôo com jantar à luz de velas” e ele, no muro: “haha... Está certa”. Sem ter ideia se aquela era uma resposta promissora, comprovou sua veia de sarrista incorrigível: “Fique tranquilo que eu não mordo, só com segundas intenções, mas não tem reclamação no Procon”. Ficou no vácuo. E claro, querendo descobrir onde encontrar um “workshop intensivo de entendimento da alma masculina”.
É, a prima da artista para a qual ele não “cortou o barato”, mas também não atendeu mais as ligações tinha razão: “relacionamento hetero é como jogo de pique e pega. Só mando um torpedo ‘onde’? pra começar o jogo quando estou muito animada”. Mas ela não combinava com este estilo. Gostava das mensagens mais brincalhões ou metidos a intelectual. E numa manhã de absoluta certeza que concluiu - depois de meia dúzia de namoros, só podia bancar o filósofo: “tudo que sei, é que nada sei”, teve um insight providencial: ELE FUMA!
Tinham saído tantas vezes, tinha esquecido as escapadas dele em direção às calçadas ao ar livre pra saciar o vício. “Que alívio”, suspirou. “Se tudo desandar, faço como a raposa da história em que ela desdenha as uvas que não alcança: ‘eu nem queria um namorado cabeça, charmoso, voluntário e atleta mesmo’”.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Paixão Que Espera


Tuas palavras me provocavam vertigens como os balanços da minha infância. Era um amor literário, confessemos. Quando suas mensagens chegavam – e elas vinham todos os dias, religiosamente, me sentia grata, por confirmar que estava viva novamente: as borboletas davam rasantes em meu estômago. Me ensinou a delícia da suspensão de não saber onde vai dar. E mesmo assim, achar mágico, especial, pleno! Até que uma pergunta se interpôs entre nós. Como diria meu professor, a porra da palavra. Gozado: foi você quem questionou:
- O que a gente tem? – E provoquei, não resisti:
- Você não fala em amor livre? Quer rotular mesmo assim? – Contei que não tinha ideia no que ia dar e mesmo assim era incrível: me sentia com 15 anos quando suas palavras me visitavam e eu ria sozinha.
- Só pergunto, pois daqui a pouco começaremos a caminhar para o que não pode ser feito em público. – confessou.
De alguma forma me encantei. Ah, o veneno da palavra. Quando caio nas graças dela, me descortino. Esqueço que vocês ainda têm que conquistar e nos desnudar como pétalas de rosa em botão.
Contei não aguentar mais ser tratada como propriedade pela família e me sentir enclausurada no trabalho. Achava que só na paixão podíamos nos rebelar contra isso. Que mais importante que a fidelidade, era a lealdade. Que ninguém vale a sensação de momento perdido que não volta mais. Que já comprovamos nos relacionamentos anteriores o quanto os tradicionais morrem na praia. Que queria reinventar a experimentação amorosa libertária, nem tão “Woodstock Now” quanto os amigos hippies retardatários e nem tão caretas quanto já tentamos e nos frustramos. De alguma forma provoquei teu vôo rumo à liberdade que tanto almejo. Prefiro um retorno demorado, mas certo da saudade que sente a um estar do lado suspirando pelo que não viveu. Confesso ainda sentir falta das idéias baterem como que ancestralmente e me provocar frio na barriga digno de gangorra emocional. Mas há algo indefinível entre o amor e a paixão que sabe esperar, reserva o tempo para semear, colher, brotar, buscar o sol, germinar... Ainda sou um broto!