segunda-feira, 29 de junho de 2015

A Mulher que Rasgava Revistas nos Consultórios

A família a incentivou a ser "rata de banca" e ela devorava matérias de revistas. Era um perigo quando ia ao médico ou dentista, pois sempre enfrentava a lei de Murphy literária: quando encontrava publicações que não eram jurássicas, e chamavam tão rápido que mal lia os títulos. Daí não resistia: rasgava as matérias dos impressos, escondia nas bolsas e lia nos ônibus ou metrôs na volta. Não era possível acusá-la de ladra midiática assim, à queima roupa: era hábito dos familiares e é impressionante como a genética envia heranças pouco nobres. A tia também decepava revistas Claudia, Super Interessante e Galileu. Ultimamente se contentava com Seleções e Nationais Geographcs paleozóicas. Era uma aspirante a cientista, muito embora tenha modestamente varrido centros comunitários e passado em algumas linhas de produção. O hábito a tinha transformado numa "terapeuta da esquiva informal": quando percebia que parentes adentravam o limbo de assuntos polêmicos que renderiam brigas desnecessárias nas casas deles, fugia para um assunto que gostavam e terminavam o reencontro em paz. A sobrinha roubava matérias da Vida Simples, Viaje Mais, Rolling Stone, Cult, VIP, TPM, Piauí, Carta Capital, isso quando o abastecimento periódico dos consultórios ajudava. Se não houvesse escolha, substituía por Bons Fluidos, cadernos culturais de jornais amarelando, Isto É e em último caso, Nova ou Men´s Health. Quase escolhia médico assim: antes de marcar consulta, checava a linha editorial da sala de espera. Uma ex chefe preferia conferir no livro de credenciados os bairros nobres, preferencialmente um doutor com sobrenome judaico, assim garantia que ao menos estudados eles eram, já que se vangloriavam que "conhecimento ninguém tira dessa comunidade". Ela não. Ultimamente também verificava com a secretária se o médico desceria o cacete no Mais Médicos, caso contrário ia fazer manutenção ginecológica e por tabela sua gastrite era atacada. Andava em crise com os que classificava classe mérdia e se auto enquadrava como sub classe mérdia, muito embora os amigos a provocassem dizendo ser aspirante a esquerda caviar, com aquela mania de procurar médico holístico, quando o orçamento ajudava. Um dos primos ou tios juravam que era possível falar com ela de colostro a física quântica. Também lia os livros, mas esses demoravam mais a acabar, conforme a programação de sua circulação: se pegassse mais transporte público que carona no horário do rush, teria que se segurar mais e consequentemente conferir obras e folheá-las ficaria inviável nas idas e vindas modo lata de sardinha. O pai também foi maníaco midiático. Conta o folclore familiar que para "devolver à natureza" tinha que ler uma Globo Rural inteira, com perdão da simbologia escatológica. Eram em muitos irmãos, a casa só tinha um banheiro, nas manhãs de apuro para irem ao trabalho, brigavam pelos banhos e escovadas de dente nele (entre outras pautas reinvindicatórias), a ponto de quebrar cadeira um no outro. Aparentemente eram interessados e bem informados, embora de difícil convivência. A irmã mais nova era enlouquecida por Casa Claudia, Estilo e Casa & Jardim. Única abastada dos sete irmãos, tinha obsessão por construção, lipoaspiração e reforma, devia estar na quarta, se os familiares não perderam as contas. A que roubava matérias nos consultórios tinha começado com os gibis. Não a roubar, mas a ser nerd literária. Quando muito pequena, liam para ela, que saía recontando aos vizinhos, colegas e amigos, na fase anterior à suspensão precoce da infância das crianças para começarem na escola, então era natural estranharem:
- Mas vocês não alfabetizaram cedo demais?
- Ela não lê, decora e reconta.
Deve ter sido com uma ida conjunta em algum médico que a sobrinha começou a rasgar e roubar matérias dos consultórios. Eram ágeis. Bebiam uma água, iam ao banheiro ou aproveitavam cinco minutos de solidão na sala de espera para levar embora as páginas mais interessantes. Tossiam ou riam para abafar o barulho das páginas. Tinham um certo orgulho marginal de recontar essas peripécias, mas há um mês a mais nova rompeu a tradição familiar pedindo à terapeuta:
- Posso levar a matéria sobre Alexandre Nero?
Teve dúvidas entre o conteúdo dele e o que escreveram sobre o primo Ignácio Loyola Brandão. A "rádio família" logo circulou a adaptação da redistribuição forçada de informação recente. Desde então a tia larápia intelectual não fala mais com a sobrinha. Segue a vida...

sábado, 6 de junho de 2015

Perfume da Terra

Tive uma infância de cheiro inesquecível no norte do Paraná: cheiro de chuva, café e terra vermelha. Em São Paulo, minha mãe sempre mandava lavar o pé (agora me toquei, é lembrança de uma região em que casas, carros, cachorros brancos, todos viram marrons) e no ABC até tive algum quintal, mas mais caí que aproveitei, por conta de uma pegada desastrada sagitariana. Aqui em São João City, minha mãe sempre mandava entrar quando "estava ficando tarde" e os vizinhos solidários brincavam comigo no corredor. Devo pra minha criança interna subir em árvore, se lambuzar na lama e construir brinquedo. Em Santo André lembro de andar numa bicicletazinha do primo, antes dele mudar pra blasé Curitiba, de tomar banho de mangueira com a irmã dele e a tia divetida mãe dos dois, de ser enterrada na areia pelos primos em Guarulhos, brincar de bonequinhos guerreiros com eles, da minha
Esse primo claro que já está maior que eu
Barbie ser apaixonada pelos Falcons que os primos tinham e de outra tia desencanada me monitorar em viagem à praia por um pontinho ruivo que pulava láááá na água, enquanto ela preferia o sol e a areia. Liberdade mesmo, só nos tios! Graças aos primos e mais primos não posso cantar como
Cazuza "sou filho único e você tem que entender que somos seres infelizes". Mas lá onde a terra cheirava à chuva ou café, tinham outras primas e o que era mais mágico, um quintal com um esconderijo de um tio avô que devia ter toc e levava para lá qualquer tranqueira descartada por Deus e o mundo na rua. Lembro do banheiro de buraco no chão, das casas de madeira, da varanda com rede, da tubaína que meu avô comprava (não parecia tão doce quanto hoje), de parentes e mais parentes com aquela sabedoria ancestral que não tinha paciência de valorizar pequena demais. Mas havia uma subidona (ou descida, dependendo se era hora de partir ou de chegar) e árvores frutíferas neste quintalzão do avô (a filha dele infelizmente cortou tudo hoje, pena que não tem polícia florestal por lá). Vô tinha botas pesadas, cruzava a cidade de bicicleta, deixou escritas memórias dos tempos de pioneiro no norte do Paraná (atualmente ganhamos placas de rua com nome de antepassado),
paquerava no baile da saudade, subia em árvore com os pequenos já de cabelos brancos, puxava bloco de idoso no Carnaval e levantou gerações numa árvore genealógica em que chegou à conclusão "somos caboclo com caboclo". Não consta gringo e como meus pais são primos, parte dessa árvore se cruza fácil, foram gerações casando primos, eles viviam em fazenda, só visitavam parente, como raios conheceriam gente de fora dos Mendonça, Machado, Brandão ou Duarte? Meu colega prô de história diz que inveja meu pique (embora ele já tenha sido mais digno de neta do seu Renério, mas devo ter puxado parte do gás que sobrou dele). Ah, ele fazia bolinho de chuva, que agora estou com vontade de levar para os alunos (assado, pois sou teimosa natureba). Parte do talento jornalístico também vem dessa direção familiar, pois quando vô vinha para São Paulo, achava gente que tinha trabalhado ou estudado com ele há décadas, pelo 102 (parece que a Telesp tinha um serviço de auxílio à lista melhor que o da Telepar, mas hoje em dia quando tentamos o contato do Ministério Público ouvimos "assinante não autoriza divulgação". Incrível ainda ter teimoso com a cara de pau de defender privatização). Tinha mal estar de não lembrar a última vez em que conversei com seu Renério, pois quando ele ficou 3 meses internados antes de ir embora eu estava naquela fase de quase dormir na redação, com plantão e fim de faculdade. Mas minha mãe recordou que uma prima achou bonito eu cantar para ele no hospital. Tenho uma impressão que a contadora de histórias nasceu lá. Sei que fugi ao título leitor, mas a última vez em que voltei a Cambé, grudada à Londrina, não senti mais o cheiro de terra vermelha, café e chuva. Tô igual Drummond "Itabira é um quadro na parede/ mas como dói". Devia ser bonito plantar lá. Só desconfio que esse perfume da terra ficou na minha infância, não sei se por poluição, falta de água ou... Até os cheiros devem ser mais marcantes quando somos pequenos. Nem é aniversário de ninguém da família. Desconfio que este post nasceu por conta da... minha gata Peteca ser tão "criança feliz" quanto meus alunozinhos das creches. E de repente eu sentir falta da Luciana, Denise, Marcia, Michelle, Rodrigo, Carolina, Rogério, Ricardo, Tiago, Mariana, Raíra, Nathalia, Junior, Renerinho... Pra quem não está um estado abaixo... Um café antes do feriado acabar era providencial, não?