sexta-feira, 18 de abril de 2014

De amor indefinível

Havia uma relação ali alérgica a rótulos. De tardes dos dois rindo em caminhadas compridas para fazer inveja a mineiro que considera “qualquer coisa menos que 450 quilômetro pertim”. Almoços meio batizados de choro com chateação de amiga e consolo do parceiro. Tardes “gogando” e mapeando como corrigir escolha enganada de bairro, agora que o concurso a chamava para trabalhar do outro lado da cidade. Dum apoio amplo, geral e irrestrito à mudança de área dela. De noites e tardes cozinhando a quatro mãos, usando a colocação do avental como desculpa para se abraçar e do preparo coletivo diluir qualquer assinatura individual nos pratos. Dela gastando instinto maternal com a “gachorra” dele, a única que atendia chamado pelo nome, se esparramava na barriga de ambos, ficava horas no colo de barriga para cima recebendo cafuné e respondia conversa miando sem cansar numa conversa que “mistura idiomas”. De filmes e peças em dupla para rir, chorar, se divertir, emocionar ou ficar debatendo nos cafés sem pressa depois. Dele brecar o desastre e a distração dela a cada buraco, cocô na calçada ou farol que se abria, feito irmão mais velho. De contarem ou lerem histórias um para o outro como quando eram menores e pediam “conta mais”! Ou quando ouviam “era uma vez” e ficavam de olhos vidrados, ainda que “semi novos” para manter o encanto das fábulas por muito tempo. De irem juntos ao hospital e ele brigar com a má vontade da médica na hora de trocar receita, bem quando ela estava frágil demais para bater boca com a doutora que a deixava falando sozinha. De meditarem com a “gachorra” entre eles, tão desesperada por comida quanto a gastrite dela. Dele segurar a mão da companheira de fim de semana quando a amiga chorava na hora de ia dormir, com algum mal estar emocional vindo à toa. Deles proseando e navegando de cuecas samba canção pela casa dele. De filme dividido no sofá, com ele roncando da metade em diante. Dela oferecendo chá depois do estômago dele reclamar por ter sucumbido ao pecado da gula. Da dorzinha dela receber oferta de remédio. De chá natureba dividido. Dele a empurrar para a sombra percebendo quando o sol a castigava nas longas caminhadas. De limparem a pia um do outro. De compartilhar espera em rodoviária cheia na véspera de feriado. Dela aproveitar para além de diminuir a água ralo abaixo na faxina periódica dele, ainda refrescar o calor que a persegue. Dela caçar shampoo específico para o cabelo dele. Dele tirar dúvidas de barba e sobrancelha com ela. Dele achar escova dental pra ajudar a cabeça oca da amiga que “faz camping” na sua casa e esquece de carregar o kit básico. Ele palpita para ela não emendar uma história amorosa na outra e não sobrecarregar a alma de emoções de difícil processamento. Ela tenta convencer que se diverte até quando os ensaios de paixão desandam, mas às vezes não disfarça quando uma lágrima escapa furtiva. A dupla recolhendo rastro de turista descuidado em trilha no meio do mato, consegue rir até em conversa política, por mais vexatória que ela ande hoje em dia. Ela banca a cupido com ele, que prefere deixar que a existência faça sua parte. Ele formiguinha de tão fã de doce, que às vezes ela limpa a boca dele do açúcar que ficou para trás. Ela maluca por “bobajitos” salgados. Com interlúdios lights entre uma “enfiada de pé na jaca” e outra. Uma ansiosa, um tranquilo. Um caseiro, uma irriquieta. Uma tagarela, um tímido. Uma estupidamente carinhosa, um introspectivo. E nos derrapões das escancaradas diferenças de temperamento vão modelando um sonho “quase realidade” de mochilão em conjunto. A ponto de amigos em comum, consciente ou inconsciente, terem ciúme ou inveja branca de tanta intimidade brotando feito água nascente, dessas ansiadas que nem conseguem se conter. Qualquer rótulo descolaria rapidinho, de tanto lugar incomum que compõe esse amor de irmãos reencontrados depois de encarnações se procurando. Perguntando aqui e ali o que são, como se definem, numa ciumeira e curiosidade fora de lugar que brota constrangedoramente sem esperar. Numa madrugada de prosa comprida ao fone com a prima, Pilar define o que é de Acir: “desnamorada”. E julga o amigo sua alma gêmea neutra. Parceria bonita, fofa e triste ao mesmo tempo. Como todo amor que fecunda umas saudades “de quando em vez”.

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