segunda-feira, 2 de julho de 2012

Tempo de Jabuticabas

A avó guardava potinhos de iogurte para ela brincar quando viesse visitá-la de outro estado. Era uma viagem comprida, impossível de acontecer com a frequência que famílias saudosistas gostariam de fazer. Por isso, a cada entrada no antigo fusca laranja – ou seria branquinho? Estava ficando daltônica como o pai? – era uma festa digna do clima “vamos pegar a estrada e sair por aí”.
Os pais ainda tinham pique para estas looongas travessias quando era pequena. Numa ocasião em que o carro os deixou na mão, foram do ABC paulista até a rodoviária do Tietê de condução pública – sempre uma lástima, desde aquela época – e enfrentaram água pelos joelhos, depois de São Pedro lavar o céu todinho. A filha, nos ombros do pai por ser pequena demais para a jornada água adentro, comemorava balançando os pezinhos: “não molhei meus sapatinhos”!
A avó era um capítulo à parte, tamanha bondade. Antes, muito antes da neta mergulhar na única religiosidade que fazia parecer ter voltado ao útero – o budismo – já tinha umas práticas que pareciam ser provindas de meditação de outra encarnação: colocava água em tampinhas de refrigerante para as baratas, lá fora, “pois ninguém pensava nelas mesmo”. Porquice? Estratégico! Elas se acostumavam aos bons tratos e ficavam fora de casa. Mais budista, impossível: respeito a TODAS as vidas.
As casas, carros e cachorros de lá tinham uma cor específica: a da cidade. O cheiro era único também: mato, café e terra vermelha. Uma lembrança eterna, de encher os olhos e confirmar o o ensinamento do mestre de contar histórias: “a memória olfativa é a mais rápida”. Claro que para comprovar que avó é mãe com açúcar, tinha o bobajitos que o paladar nunca mais encontrou igual: bolinho de chuva.
Avó tinha ainda outro gosto específico: tubaína. A neta encontrou adulta até um bar com este nome para comemorar aniversário, mas como alertava um discípulo a um rei meio faminto e nostálgico numa história zen: “não posso fazer para você a comida que seus pais te davam – nunca poderei recriar o aconchego daquela época, a forte presença deles, o amor que dá outros paladares para nossa infância”.
Avó mimava, mas não muito. Lembra de uma boneca, a Dorinha. E ainda tem foto com as primas na varanda de casa, com a caixa atrás e as três dando aquelas risadas que só os 4, 5 anos possibilitam.
Casa... Para quem vinha de apartamento, aquelas férias eram um idílio. Quintal. Grama na qual ela sempre quis pisar, mas a mãe sempre proibia: “vai lavar o pé”. Os banhos no tanque da lavanderia. O cachorro ciumento, que numa noite de distração familiar, nhac! Tentou morder o pé dela, mas deve ter se saído mal, pois o mesmo era protegido por bota ortopédica.
O quintal. A incômoda casinha de fazer necessidades. O quartinho do tio, que levava qualquer “tranqueira” que encontrasse para estocar, pois jurava que “um dia ainda precisaria daquilo”. Um memorial misterioso para crianças, com brinquedos, caixinhas e outras traquitanas às quais tínhamos acesso controlado e supervisionado. Praticamente um museu do que nunca se usou, mas por algum “toc” não diagnosticado na época, foi armazenado e mostrado para as crianças como relíquia, provavelmente com uma história e tanto para justificar a manutenção daquele objeto ali. Os olhos curiosos das crianças nunca esqueceram tudo o que não podiam tocar, mas guardaram no coração histórias e mais histórias de um tio meio caduco, talvez gagá, porém poeta de primeira linha.
As frutas. Colhidas no pé. Com sabor que a cidade nunca proporcionaria, que só o transporte e negociação com os “atravessadores” já colocava nas mesmas um sabor de paga injusta. E o mais marcante: o tempo de jabuticabas. Não podíamos nos fartar muito delas, embora fossem irresistíveis: elas desandavam o intestino.
A boca melada que voltada para a varanda, desta vez para ouvir as histórias do avô, também poeta, meio historiador, que levantava a árvore genealógica de toda a família, encontrava amigos e familiares que não via há anos pelo auxílio à lista da época e ainda escrevia as memórias dos pioneiros da região, que mais tarde ganhariam ruas com seus nomes.
A rede. Sabor de velocidade, altura, que a neta nunca teve coragem de enfrentar em parque de diversões, mas ali parecia tão aconchegante e seguro no colo do avô, ao lado do pai, pertinho da mãe e da avó.
A avó que anos depois provocou uma viagem misteriosa e meio turbulenta, para uma despedida não prevista e indesejada. Os adultos tentaram encontrar os potinhos de “danoninho” coloridos, com os quais a neta brincava para distraí-la, que numa sabedoriazinha mirim concluiu:
-Só minha avó sabia onde estava!
A semente. A descoberta de que, anos mais tarde, só poderia ter sido concebida nestas terras, de fartura, leite quente, café cheiroso, toalhas xadrez, primas meio lendárias com seus muitos gatos e pais super protetores, passarinhos na parede e casas de madeira, de um colorido que tentava driblar a terra vermelha.

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