segunda-feira, 2 de julho de 2012

De onde vem a música interna?

Limpa com a mão o suor da testa. Estava percorrendo todo o bairro com seus projetos, oferecendo parceria profissional em todo espaço com cara de ateliê, aspirante a centro cultural ou pretensa escola artística do bairro. Naquela região metida a descolada, não eram poucos. De repente se depara com uma casinha pequena, mas com diversos objetos sonoros em sua entrada, além de divertidos convites: “toque que desestressa”.
Se animou. Tocou a campainha diferente já pensando na abordagem: contar onde estudou, os dez anos de prática – não importa se quase sempre realizada “por amor”... Era hora de fazer valer tanta vivência. E o talento quase ingrato faria ganhar dinheiro “e é pra já”... Ouviu outros novos sons vindo de dentro. “Ah sim, demonstrar o quanto suas ideias casam com a música e...”
A porta se abriu. Parou de raciocinar e entrou noutro tempo, em outro espaço quando viu o provável proprietário do lugar, pelo tamanho modesto em que trabalhava. Como nos filmes que julgava água com açúcar, começou a ouvir uma trilha sonora criada especialmente para aquele momento, de súbita paixão à primeira vista – justo ela, que não acreditava nisso!
“Meu Deus, ele mexe a boca, mas não ouço o que fala”. A música não era do espaço dele, vinha de algum lugar dentro dela mesma, fazia com que os carros da rua passassem sem barulho e não tivesse a mais vaga ideia do que aqueles olhos claros e sorriso aberto diziam no momento.
Nem era assim... Nenhum padrão típico de beleza, que sempre foi avessa aos obviamente belos, via uma inteligência aqui, um bom humor acolá, um talento irresistível... Mas o que é que encantava agora, ela que tinha um estilo tão “cabeçóide” de se apaixonar e agora não conseguia escutar mais nada, só aquela música nunca antes ouvida, criada para aquele instante, pela sua própria percepção?
“Senhor, acho que ele perguntou alguma coisa, parece esperar resposta minha e me sinto como os personagens do Snoopy ouvindo a professora do Charlie Brown: ‘bló bló bló bló bló bló’”. Saiu pela tangente, “se fingiu de morta” para a questão dele e apresentou seu projeto, fez uma proposta casada com música, pois desconfiava que o som pudesse vir de dentro do espaço dele e tinha uma clave de sol na entrada, quando ainda estava na calçada, imune àquele turbilhão de sentimentos e sensações desconexos, totalmente novos.
Apesar do que foi dito provavelmente não ser o que ele esperava, se animou mesmo assim e convidou para conhecer seu espaço – ao menos era o que indicava o corpo dele, pois a música que ela não parava de ouvir não tinha dado trégua até então. Aceitou de bate pronto – se ele chamasse para ir até a Antártida, embarcaria para depois lembrar “putz... Não tenho roupa para este frio”...
Só lá dentro, quando ele foi mostrar como fazia música do que menos se esperava – como uma rampa sonora de madeira com bolhinhas de gude e água, é que seus sons internos deram espaço às demonstrações de como ele fazia canções de materiais cotidianos – e eram belas! Ela mesmo tinha cismado que o metrô na Sumaré, indo ou voltando, não tinha bem certeza, tinha um começo de música do Cazuza – e ela nem tocava nada, só campainha!
Apresentou instrumentos criados a partir de sucata, material de construção, o impensável. Alguns ela parecia ter visto em imagens indígenas ou de tribos africanas, não tinha muito bem certeza, podia ser alguma memória ancestral. Ele convidou para alguma apresentação, era ali perto, ela morava na região, claro, seria um prazer.
Quando se despediram... Ele tinha um cheiro bom. Não era perfume, era pele. Era cheiro de maresia. Estavam na cidade, como ele podia ter cheiro de praia? Tinha um quê de mato molhado também. E qualquer coisa de terra vermelha, café. Gozado! Todos aromas que remetiam às memórias mais infantis e felizes dela.
Na calçada, já voltando para casa, ouvindo um pouco da música anterior, só que mais baixo, caiu uma ficha que até então estava em amnésia dentro dela: era comprometida, no modelo fiel e o som dele rolaria num sábado. Não tinha a menor ideia do que fazer. Chamar quem viva com ela para cima e para baixo? Chutar tudo para o alto? Nem sabia se o artista pelo qual tinha se encantado tinha alguém, se também tinha ouvido a música que ela escutava...
“Na hora em que o mundo virar de ponta cabeça, mergulhe num café com avelã, chocolate, espuma de leite, enfim aquele que seu pai considerava ‘praticamente uma torta’” – era a recomendação do seu cabeleireiro meio psicólogo. Como se sentia meio virada do avesso,  parou num desses cafés em que praticamente tem que “adquirir participação societária” por uma mísera xicarazinha, mas o momento pedia. Depois de deixar a bebida “para sempre em sua cintura” decidiria o que fazer. O momento pedia reflexão aromática. Quem sabe aquele cheiro da infância não espantava aquela musicazinha sem fim desde que cruzou o olhar daquele artista?

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