Nós nos conhecemos nos apertos de "Casseta Mercantil". Os salários não saíam e quando ele tinha que arrumar nossos cabelos, praticamente "lavava louça" em nossos couros cabeludos. Até hoje enrolo para retocar minha "ruivice estado de espírito", pela aflição de desembaraçarem a "casinha de sapê" a seco, sem creme. Mas tenho "porcelana de queixa" que tudo machuca e não "casca de mulata" resistente até a gilete enferrujada como minha prima irmã. Cada mergulho naquela mistura de tintas é sempre terapêutico, só que eu esqueço por ter dificuldade de ser 100% mulherzinha: arrumo o cabelo, descascam as unhas, faço o pé, a depilação já venceu. Não acompanho a necessidade em tempo real de manutenção com esta agenda digna de Duracell: oficina, capoeira, peça de amigo, aula de dança. Só quando percebo que estou "brincando de abóbora do Dia das Bruxas" é que agendo retoque e volto correndo. Devo ser daltônica igual o "sarrista inveterado que e gerou".
Pintar cabelo é uma alquimia à altura de cozinhar. Ele é praticamente um mago dos pincéis. Já nem digo mais "não quero ruiva 'quenga', nem escancaradamente pintei ou ponto de referência". Relaxo. O quanto minha alergia permite, pois basta que ele se recolha à "bat caverna" das caixinhas coloridas, faça o mix do ruivo, com acaju e louro escuro ou coisa que o valha e volte de tigelinha na mão, pronto para a renovação que você precisa e ele já detectou pela ironia com que pisei no salão. E eu me rendo: à coceira do couro cabeludo, ao sarcasmo imperdível dele, a todas as vezes em que ele puxa meu tapete, pois precisava de novo me sentir com os "pés no ar" e ele percebe, pois não é só o técnico que alterna a tesoura, com o desenhar de uma sobrancelha e redesenhar um rosto, é o terapeuta de coração, que rebate sua revolta descabida com a terapia "da libertação pela risada". É a quem entrego a moldura do meu rosto, mas só depois de besuntada até pintar a testa mostro a foto que fiz da farmacêutica e confesso que era aquela cor que queria, mas sabia que seria impossível, pois ela é "original de fábrica". É ele quem sempre aconselha "não tenha juízo e se tiver, não use". É graças a ele que confiro no espelho depois e estou sim, no tom que queria, com o qual ouço "não acredito que não é seu, jurei que era".
Ele não medita - até onde eu saiba - pelo menos não disciplinadamente, mas quando se municia de seus pincéis, fica completamente entregue à arte de nos devolver à nossa personalidade descoberta ao longo da vida, já que foi ele que me ensinou que cor dos fios e perfume nos personificam. Acho que com ele comecei a aprimorar a fina arte "de rir da minha própria desgraça", quando o que nos era devido não era pago, ele pesava a mão na maquiagem e eu entrava no ar com as marcas de nossa indignação pela penitência paga naquela várzea trabalhista em que nos conhecemos.
Com ele, me aprofundei no histórico das prisões trabalhistas televisivas brasileiras e o calote que cada uma imprimiu na história de superação dele. Sentada na sua praticamente "taberna de mago", pude viajar pelos quatro cantos do mundo em que ele preparou atores para entrar em cena e não ouso contrariar quando ele brinca "tudo louco", pois tenho menos tempo de estrada que ele para argumentar. Me ressinto que quando virar as costas ele falará o mesmo da minha porção atriz, mas me justifica que sou desequilibrada, o que é diferente "louco rasga dinheiro (talvez o que não o pagaram) você é 'talvez, quem sabe, apesar, contudo, todavia, quiçá'".
É no recanto do meu mago terapêutico que relaxo ao ponto de me permitir ler fofoca descompromissadamente, de escutar comentário ácido sabendo que é o momento da "terapia do espelho", em que precisamos ter olhos para ver a necessidade coletiva de processar nossos demônios analisando o pecado alheio. Mulher não é fofoqueira "de carteirinha", mas "psicóloga por instinto": tem que entender a escorregada de quem conhece para marcar a fogo em si mesma o caminho de não vivenciar a dor de quem do outro. Assim como muitas rodas de homem "desestressam" da pressão cotidiana debatendo futebol, bancando o gourmet da cerveja ou discutindo nossas curvas, relaxamos de ser mãe, profissional, esposa, mulher, filha, vizinha e amiga, nos entregando aos dedos mágicos de quem nasceu para pintar um quadro em nosso rosto, mas começou treinando no seu mesmo e descobriu domesticamente como improvisar visual displicente ou atenuar cara blasê sem expressão. E com ele descubro que a questão não é fazer o que se ama, mas amar o que se faz, pois ele estudou para cabeleireiro por ter ganho um curso, mas sempre teve e ainda tem nojo de cabelo - só que faz de nós as estrelas da telinha e do palco que ele preparou tantos anos atrás.
Como ele ganho dicas prosaicas: "o que disfarça olheira é creme para hemorróida", levanto declarações bombásticas "já colei cílios postiço com super bonder", relembro a verdade fugidia "vocês tem que ser felizes por vocês, independente de casar, quem já teve marido viu que não é tudo isso", descubro "que pele negra e morena têm mais tendência à alergia ou quelóide, uma vez quase 'empacotei' um músico do Roberto Carlos para que a luz do palco não refletisse tanto no grisalho dele" e recebo insight digno de mestre espiritual "depois que perdi meu pai e minha mãe, nada mais é importante".
Do interior ele veio, varrido por preconceitos provincianos e ao meio do mato ele voltou dando a volta por cima, já escolado, tarimbado, reconhecido, como é de praxe naqueles em que ser guerreiro é o caminho natural, recebendo o tratamento oposto ao de anos atrás, quando ainda não tinha se descoberto o batalhador dos pincéis e tesouras.
Com ele ri dos bastidores de TV, quando maquiou uma colega em comum e o apresentador quis fazer merchan: "o Jaques Janine que te deixou linda", mas ela corrigiu "não, foi o Nino". Noutra entrada, mais uma escorregada no abacate do especialista em alfinetar daquele canal "só pode ter sido esse o cabeleireiro de vocês que errou no seu visual hoje" e ela "não, foi o Jaques Janine".
Conhece como ninguém a alma instável da mulher, que o procura "de vez em sempre" após um fim de namoro, casamento, noivado, para mudar completamente a cor, o corte... Mas ele não repagina ninguém nessa hora: "daqui a pouco você volta com ele e retorna arrependida". Também cortou os "encaixes", que "a exceção não pode virar a regra ou deixar ninguém desacostumado" e corrigir erro dos outros está fora de questão "nunca fica como a pessoa quer, mas o culpado é sempre quem tentou melhorar o que não deu certo".
Lá a gente come soja, que ele está de olho na alimentação há anos por conta da diabetes. Também por causa dela está difícil de melhorar um machucado na perna depois de arrumar briga com os "nóia" do bairro - acho que ele aprendeu a ser barraqueiro com os "jornaloucos" que atende, que geralmente "têm um palanque na garganta" e não perdem a chance de rodar a baiana.
Ele tem o nome do meu pai, com quem também tenho uma relação passionalmente exaltada. E ao contrário dele, gosta que o significado seja bento. E abençoado seja o melhor presente atrasado que poderia dar neste Natal e pré virada de Ano Novo: minha literatura. Mago, sei que isso não será garantia de felicidade, mas queria casar de novo só para você me maquiar, que essa sua mágica dos pós e sombras ainda não tive o privilégio, mas terei. E será numa bênção (como seu nome), que para combinar com a "casa nova inacreditavelmente familiar que voltei", precisa ser budista. Muitos preparados de pós, cores, reinvenção dos cabelos, remodelar das sobrancelhas, temperadinhos com viagens, amor, paz de espirito, saúde, proteção e abundância no ano que chega. É que melhorar o que foi criado e não combina com a gente também é brincar de Deus. Que do seu salão saí curada de muitas dores corporativas e amorosas. Evoé!
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
Nessa ceia, uma terapia
Minha família sabia exatamente o que precisava neste Natal. O meu pai "pé no peito" falou que meu vestido estava especial. Oi?! Reclamei com minhas tias que o kibe de forno, depois de virar a cozinha do avesso, não tinha dado certo, que comia cada delícia nos bazares veganos, demorei cem anos para arriscar levar algo meu na ceia, mas ele desandou e uma delas disse que o que valia era a intenção. Cheguei com a maior cara lavada na festa, mas minha comadre deu um trato com suas habilidades de maquiadora, que "vamos combinar"? Aprovaram a produção depois. A campanha contra a minha "pegada natureba" continua. Mas dessa vez tinha uma meia dúzia de pratos para eu não me sentir colocada para escanteio na ceia. Não rolou o tradicional amigo secreto ladrão. Mas o divertido foi presentear só as crianças e vê-las atirando os perigosos dardos de plástico pela casa afora e agarrando cães de pelúcia. Rolou uma nostalgia das épocas de abundância de presentes em nossa infância, mas "passou, foi só um sonho". Meus pais puxaram o carro cedo. Mas ganhei um colchão em pleno quartinho da minha saudosa avó para esticar a balada doméstica - uma bênção para meus ouvidos, pois tenho tias que dão boa noite e já emendam no ronco. Ganhei uma camisolinha bonita e confortável - um milagre em se tratando de artigos para mulheres. Senti falta da prima postiça - que nós também nos apegamos aos agregados que vêm e vão da família - mas na visita ao nosso presente de Natal, o Pedroca, que chegou praticamente "anteontem" me toquei que os homens e as mulheres têm brincadeiras iguais para maquiar as mesmas chateações colocadas no fundo das prateleiras. Pelo segundo evento familiar consecutivo, o priminho antissocial me abraçou, beijou: é um presente e tanto em se tratando de um "escorpianinho" típico. Conhecemos o novo membro da família e esperamos não tê-lo assustado com o quanto somos emotivos exaltados. As fotos da prima que descambou para a Austrália alimentam sonhos velhos de guerra. Compartilho com minha comadre a mesma indignação e vontade de melhorar nosso ensino. Minha tia me deu um banho de creme e trança que foram uma quase reconciliação, depois de passar a infância reclamando que minha mãe cortava meu cabelo "Joãozinho". Fomos num comboio assustador visitar o novo membro da família, que nem se abalou com o quanto um pede silêncio e o outro emenda numa piada em alto e bom som. Fiz o banco do carro da minha tia de divã na carona de volta. E o presente natalino foi intangível: fazer a priminha que parece com o tio dormir, embaixo da fralda que era para ela não se distrair, ouvir o tio dizer que ela tinha adorado o colo e o pai brincar que não podia raptá-la, pois a mãe teria dificuldade de comprovar que era dela, com a cor da pequena parecendo mais comigo do que com a "mulatice" da mamma. E assim, alternando dias auge da montanha russa com os corta pulsos, nenhuma pergunta ou comentário "cutuca gastrite". Eles mais que mereciam o conto que produzi aos 45 do segundo tempo e li depois do almoço neste feriado. Me revezando nas interrupções deles, que mostram de onde vem minha dispersão. Como passar o Natal longe dos "loucos mansos" do meu coração?
domingo, 23 de dezembro de 2012
Estrela cheia a baião
Essa semana a esperança saiu do coma induzido. E deu um respiro. Enigmático, mas assoprou que a vida é um segredo de Deus sussurrado numa noite de chuva. Então só chegam pistas. Que a jornada é para ser descoberta, desvendada, desvelada. Como abrir o doce feito e embrulhado a mão. E o mesmo mestre de sempre, a mesma voz de outrora, descortinou o estudado, mas esquecido "é um sonho, ainda que em vigília". E então a gente sorri para ele. Percebe que está caindo, mas se liberta pela risada. Olha a areia do apego escorrendo pelos dedos, tudo absolutamente diferente do que enfiaram na sua cabeça que tinha que ser. Mas brincamos de senhor da dança. Reencontramos a pessoa amada, nove meses depois e ela nasceu de novo, magra, radiante, transformada, entendiada. Com prosa para um dia de riso, choro e macarrão improvisado. E a gente revê as tias, arreganha o coração, se diverte e se emociona. Ouve para falar baixo e em seguida vem quase um grito de euforia. Que saímos da barriga e já nos contradizemos. E corre para dançar, crente que não vai chegar, a amiga faz o milagre da multiplicação dos ingressos e a gente arrasta pé. E convida para dançar e nem pisa no pé, ouve que é dançarina profissional e sua a alergia, se sente em Exu, no Nordeste, quase no meio do filme do Gonzaga. E o baião arrepia os poros e salta as veias e a gente rodopia, que somos "auto divertidos" como na comuna do falecido Orkut velho de guerra. E ganha vinho e chama Dionísio para a pista e prende o cabelo, faz Maria Chiquinha, volta para a infância. E dança. Apaixona pelo brinco da amiga, agradece a sandália franciscana - uma pechincha - ela escorrega, mas no embalo do Trio Virgulino, só dança. Sozinha e acompanhada, de olhos abertos e fechados, como se tivesse plateia e como se ninguém estivesse vendo. Termina o show de sorriso largo, coraçãozinho apertado, ai que lombriga de São João! Se esparrama pelo almofadão do Sesc, fala de política, trabalho, amor, espiritualidade. Os funcionários nos tocam, têm que descansar, é verdade! Minha mana chama pra virada em São Tomé das Letras, ah que pena, a verba não esticou tanto assim. E o baião ainda está em mim. Volto para casa procurando estrela. E tentando adivinhar como o nome desse blog "que cheiro ela tem"? De mar, de praia, de terra vermelha paranaense molhada, de fertilidade encharcada, de barro esculpido, de teatro vivido, de criação literária, de paixão bandida, de vida escondida, de mistério dos astros. De Deus sorrateiro, no nosso encalço. De sonho renascido, remodelado, "encordoado", de batalha ainda não terminada, de terra encharcada, de saudade indefinida, de reencontro quase mágico, de sonho a quatro mãos, de verdade virtual, de que vontade dum mapa astral!
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
Até a exaustão
Vou escrever até morrer
até que consiga te entender
Até tudo fazer sentido
até que não corra mais perigo
até abortar isso que não tem nome
mas me deixa com uma fome
até lembrar o caminho que me trouxe até aqui
até tirar esse incômodo dali
até purgar esse lastro
até não deixar mais rastro
até lavar de mim essa cor
até não sobrar mais nenhuma dor
até não lembrar mais teu cheiro
até te esquecer por inteiro
até entender
que só sofro para te escrever
até que isso tenha fim
até te purgar de mim
até extirpar essa história
até embotar tua memória
até te fazer sumir do mapa
até pular essa etapa
até a exaustão
(esquece, não vou rimar com coração)
até minha interna reacomodação
até admitir meu exagero
não achar mais nenhum desespero
até rir de mim
e achar bonito esse fim
até que consiga te entender
Até tudo fazer sentido
até que não corra mais perigo
até abortar isso que não tem nome
mas me deixa com uma fome
até lembrar o caminho que me trouxe até aqui
até tirar esse incômodo dali
até purgar esse lastro
até não deixar mais rastro
até lavar de mim essa cor
até não sobrar mais nenhuma dor
até não lembrar mais teu cheiro
até te esquecer por inteiro
até entender
que só sofro para te escrever
até que isso tenha fim
até te purgar de mim
até extirpar essa história
até embotar tua memória
até te fazer sumir do mapa
até pular essa etapa
até a exaustão
(esquece, não vou rimar com coração)
até minha interna reacomodação
até admitir meu exagero
não achar mais nenhum desespero
até rir de mim
e achar bonito esse fim
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
E a família aumenta
Delusão
A nostalgia desenhou uma teia
O encontro recriou pontes
Voltar ao prolongamento da infância
faz o sono parecer supérfluo
As muitas ideias de uma criação
desnudam a emotividade
A língua nova da conversa pelo sorriso
e a lua explicitando bom humor e exagero
A palavra pondo em ebulição o fogo dos astros
A ocasião reencantou o destino
E o açúcar deu à luz
a pedaços novos de mim mesma
O reencantar que embota a lembrança da fugacidade
desse virar do avesso
Qual o caminho de volta?
Um soluço e a indecisão na encruzilhada
O trator real dilacera isso que não tem nome
A falta de ar de quando não dá mais pé
Pode ser o histórico meio onda do mar
O inevitável balanço de ano novo adiantado
Ou esse vinho esquecido na geladeira
que extravasa a corta pulsos que dorme em mim
O encontro recriou pontes
Voltar ao prolongamento da infância
faz o sono parecer supérfluo
As muitas ideias de uma criação
desnudam a emotividade
A língua nova da conversa pelo sorriso
e a lua explicitando bom humor e exagero
A palavra pondo em ebulição o fogo dos astros
A ocasião reencantou o destino
E o açúcar deu à luz
a pedaços novos de mim mesma
O reencantar que embota a lembrança da fugacidade
desse virar do avesso
Qual o caminho de volta?
Um soluço e a indecisão na encruzilhada
O trator real dilacera isso que não tem nome
A falta de ar de quando não dá mais pé
Pode ser o histórico meio onda do mar
O inevitável balanço de ano novo adiantado
Ou esse vinho esquecido na geladeira
que extravasa a corta pulsos que dorme em mim
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
Deja Vu
- Já sei porque gosto tanto desse perfume.
- Descobriu agora?
- Vendo essa saída em comboio do cursinho. Acho que o cheiro me lembra minha "aborrescência".
- Ela não pode ter sido tão boa assim. Nem esse perfume pode ser tão antigo.
- Não sou tão retrô quanto você pensa. Dizem que nossa memória olfativa é a mais rápida.
- Nessa fase a gente espera o resultado do vestibular. Os pais liberarem alguma saída ou viagem que nunca mais se repetirá. E o homem da sua vida da semana passada ligar.
- E nessa você, que pensou que a grande prova da sua vida fosse entrar na faculdade, espera o resultado do teste de trabalho, que por sinal tem muito mais gente por vaga. Espera ter grana para aquele filme, peça, sonha em estudar fora e pegar avião sem ser a trabalho. As viagens dos seus sonhos já te esperam há uns três anos, já perdeu as contas ou minimizou o tempo sem trégua do batente, pois a última vez que pôs o pé em aeroporto foi a negócios. Você também espera outro homem ligar - só acha que é "o da sua vida desse momento".
- Eu escrevo para decantar.
- Eu troco de papéis no teatro. Mas eu podia absolutamente tudo na sua época. Era do tamanho dos meus sonhos. Ou seja, gigante.
- Você não sonha mais?
- Sim, mas não sei onde foi parar aquela que faria francês e conheceria a Cidade Luz só por causa do nome. Acho que tenho saudade dela.
- Mas nessa época tem amigas que te deixam na mão.
- E agora há promessas não cumpridas, mas parece que podíamos confiar nelas: com os furos, você não sabe que contas pagar.
- Será por isso que uns fumam demais?
- Hoje tem quem se drogue demais. Será que é para embotar o quanto estão "um pote até aqui de mágoa" com as promessas não cumpridas?
- Vai saber? Só sei que escrevo para não morrer.
- E se não esperássemos nada uns dos outros? O que viesse seria lucro.
- Podíamos fazer esse perfume que gosta com tanta água salgada derramada.
- Mas quando estive no seu lugar era mais romântica, sonhadora, idealista.
- Ser adolescente hoje já não é mais a mesma coisa.
- Agora o inverno é mais curto, mas o frio aumenta. Deve ser por causa da solidão da qual fugimos.
- Por isso que você tem que inventar esse reencontro?
- Como você não está aí? Não usei nada alucinógeno hoje.
- Você está levando os personagens para casa?
- Você é que está escrevendo demais. Mas eu não acabei aquela sua aula de yoga que estava te dando há...
- Já aprendi o essencial. Estável e confortável. Inclusive na guerra diária. É como na cãibra: temos que ter a coragem de descontrair para a dor partir.
Cena escrita a partir do poema de Mário Bortolotto "Do lado de cá da cidade faz muito frio/ talvez por isso os amigos bebam demais/ talvez por isso eu sempre cruzo as figuras no cinema/ do lado de cá da cidade existem acordos fraternos/ talvez por isso as pessoas estão sempre magoadas umas com as outras/ e choram tanto e bebem tanto/ eu já estive do outro lado da cidade/ só uma vez" na oficina "Da Poesia para a Cena", com Paula Autran Chagas, na Casa das Rosas, nov/dez/ 2012.
- Descobriu agora?
- Vendo essa saída em comboio do cursinho. Acho que o cheiro me lembra minha "aborrescência".
- Ela não pode ter sido tão boa assim. Nem esse perfume pode ser tão antigo.
- Não sou tão retrô quanto você pensa. Dizem que nossa memória olfativa é a mais rápida.
- Nessa fase a gente espera o resultado do vestibular. Os pais liberarem alguma saída ou viagem que nunca mais se repetirá. E o homem da sua vida da semana passada ligar.
- E nessa você, que pensou que a grande prova da sua vida fosse entrar na faculdade, espera o resultado do teste de trabalho, que por sinal tem muito mais gente por vaga. Espera ter grana para aquele filme, peça, sonha em estudar fora e pegar avião sem ser a trabalho. As viagens dos seus sonhos já te esperam há uns três anos, já perdeu as contas ou minimizou o tempo sem trégua do batente, pois a última vez que pôs o pé em aeroporto foi a negócios. Você também espera outro homem ligar - só acha que é "o da sua vida desse momento".
- Eu escrevo para decantar.
- Eu troco de papéis no teatro. Mas eu podia absolutamente tudo na sua época. Era do tamanho dos meus sonhos. Ou seja, gigante.
- Você não sonha mais?
- Sim, mas não sei onde foi parar aquela que faria francês e conheceria a Cidade Luz só por causa do nome. Acho que tenho saudade dela.
- Mas nessa época tem amigas que te deixam na mão.
- E agora há promessas não cumpridas, mas parece que podíamos confiar nelas: com os furos, você não sabe que contas pagar.
- Será por isso que uns fumam demais?
- Hoje tem quem se drogue demais. Será que é para embotar o quanto estão "um pote até aqui de mágoa" com as promessas não cumpridas?
- Vai saber? Só sei que escrevo para não morrer.
- E se não esperássemos nada uns dos outros? O que viesse seria lucro.
- Podíamos fazer esse perfume que gosta com tanta água salgada derramada.
- Mas quando estive no seu lugar era mais romântica, sonhadora, idealista.
- Ser adolescente hoje já não é mais a mesma coisa.
- Agora o inverno é mais curto, mas o frio aumenta. Deve ser por causa da solidão da qual fugimos.
- Por isso que você tem que inventar esse reencontro?
- Como você não está aí? Não usei nada alucinógeno hoje.
- Você está levando os personagens para casa?
- Você é que está escrevendo demais. Mas eu não acabei aquela sua aula de yoga que estava te dando há...
- Já aprendi o essencial. Estável e confortável. Inclusive na guerra diária. É como na cãibra: temos que ter a coragem de descontrair para a dor partir.
Cena escrita a partir do poema de Mário Bortolotto "Do lado de cá da cidade faz muito frio/ talvez por isso os amigos bebam demais/ talvez por isso eu sempre cruzo as figuras no cinema/ do lado de cá da cidade existem acordos fraternos/ talvez por isso as pessoas estão sempre magoadas umas com as outras/ e choram tanto e bebem tanto/ eu já estive do outro lado da cidade/ só uma vez" na oficina "Da Poesia para a Cena", com Paula Autran Chagas, na Casa das Rosas, nov/dez/ 2012.
E do barro fez-se a arte
z
De repente olho para a produção do curso de cerâmica (que
apesar de todas as faltas atrás de trabalho, não foram poucas peças para um mês
e meio) e sorrio, mas ao mesmo tempo quero chorar. Por lembrar da tia e sua
impossibilidade de entendimento:
- Pra que fazer isso?
Na hora esqueci a palavra final destas discussões, que é a
definição de Ferreira Gullar “a arte existe, pois a vida não basta”.
É que assim, de frente para minhas máscaras, mandala,
potinho de missoshiro, copo de saquê, miniatura de busto, de pé, calicezinho
com pingo, microvasinho com flor minúscula, potenciais brincos e pingente,
arremedo de estrela, “vasos pós dramáticos” e “manjedourazinha” improvisando a
árvore Bodi para seu Buda, lembrei daquela passagem bíblica estudada na escola
evangélica em que paguei meus pecados “e no 7º dia Ele contemplou sua obra e
descansou”. Lembrei do professor que dizia “os suicidas afrontam Deus: já que
não me perguntou se queria vir, agora também eu é que decido quando vou embora”
– e olhe que dizia não fazer nenhuma defesa em favor de se matar. Na verdade, agora acredito que criando é que temos a
petulância de nos igualar a Deus. E a partir do barro então... Não foi dele que
viemos? Retomar o contato com as origens, quase que fazer as pazes com o
divino, nos reconectar com a mãe terra, ver surgir o que você imaginou, deixou
a mão te guiar, o que tinha a cara de uma amiga, o que remetia à grande paixão
de sua vida, planejar uma coisa e ver se formar outra, imaginar presente para
os pais e amigos feito com as próprias mãos... Aprender com a mestra anciã como no livro A Ciranda das
Mulheres Sábias, de Clarice Pínkola Estes, que me iniciou no barro, que a mão é
inteligente, que se não me centralizar a peça do torno não o fará, que o erro na
cerâmica pode ser uma matéria prima de acerto, como nos trabalhos de clown, que
se não fizer as lições de casa de desenhar, levar folhas e objetos que possam
ajudar a modelar o barro, as tão sonhadas ideias virão aos 45 do segundo tempo,
se desenhava criança, mas depois de conhecer a régua e o esquadro abandonei os
lápis traumatizada, que a intenção inicial de dar as peças se transforma num
apego após vê-las esmaltadas, prontinhas, que era muito mais vaidosa do que
pensava, pois não queria “melecar a unha”, que aula teórica de esmalte, queima
etc dá um sono sobre-humano, que peça pequena detalhista é – como diria o amigo
– trabalho “de presidiário”, que gosteu mais de pintar do que de modelar
propriamente dito e amassar o barro dava dores nas mãos como quando começou a
estudar e fazer massagem...
Nem precisava aprender nada. Só de olhar algumas peças em
estado de osso, de couro, de biscoito e a cerâmica, já era a suprema
realização. Todas elas bonitas à sua maneira, minhas filhas, paridas dos meus
dedos, feitas de olhos fechados, abertos, concentrada, desconcentrada,
apaixonada, “cabrera”, ansiosa, confiante, emputecida, engraçada, dramática...
Pulsando a vida por todos os poros, sorvendo cada gole até a última gota.
É que fazer o que gosto é minha pinga.
Reatando com o divino
A única
coisa da qual não deveríamos morrer de excesso é o amor. Naquele dia, o
osso do coração pedia para ser massageado. Há três anos não tinha coragem de
por a mão no osso do peito, o esterno. E dessa vez, como classificou o namorado
massoterapeuta da amiga yogue, botou energia além da conta: foi yang demais.
Fez círculos com as pontas dos dedos, com a mão fechada massageou com os dois lados, repetiu as doses, foi para além do ponto em que cortam para cirurgia
cardíaca. Quando fizeram nela no retiro de palhaço, bem no começo da faculdade,
as lágrimas escorriam e batia o pé no chão de terra para suportar a dor. Agora,
demorou um pouco para tocar um mal estar velho de guerra: o tranco que recebeu
nas quedas da época do dente de leite. Cismou que vinha daí o grosso da
carência nas relações, por sempre estranhar o acolhimento alheio dos tombos
próximos. As lágrimas vieram. Mas desta vez, mais objetivas sabe? Foi para o
banheiro. Viu o que a terapeuta disse há pouco tempo: era linda – mesmo com o
que classificavam de beleza exótica. E achou que o colega do tantra tinha
razão: o que tinha de mais especial nela, era o que chorava. E acordou tão
flexível que topou ir à missa com a mãe, apesar de sentir-se budista há mais
de sete anos.
Chegaram atrasadas e começou como criança a
querer lixar a unha, sambar com os dedos na cadeira da frente, balançar o
corpo. E como adolescente, quis questionar cada vírgula do roteiro que se
projetava no telão, se irritou com demorar a voltar e quase nada mudar. Mas a adolescência é o prolongamento da infância e dá um descômodo para quem está nela. Lembrou da irmã: a gente tem que
ter compaixão para as feridas dessa época que precisam de cura agora e lembrar o quanto não foi fácil na "aborrescência". Usou uma
técnica quase meditativa: se apegou à recitação e não à necessidade cabeçóide
que tem de esquadrinhar racionalmente tudo que seus olhos e ouvidos captam. É tão maleável em religiosidade nova... Não dá para ser na "velha de guerra"? E de repente
viu para além da irritação de quase nada mudar desde que fez crisma, primeira
comunhão, na era jurássica: era um ritual. Como quando ia ao seu centro e os
mantras eram mais antigos que Cristo, mas a ideia era reconectar com os mestres
ancestrais. Escrevendo, no dia seguinte, achou que a intenção podia ser tocar o
coração – onde para os budistas mora a mente – e não mexer com o racional dela.
Olhou a
igreja cheia de gente e viu que estava errada quando achava que eles não
podiam ter o discurso paleozóico que agravada à terceira idade: tinha que atrair
os jovens, pois os mais velhos iriam embora antes se a vida não mudasse a ordem
clichê que se esperava dela. Se apegar à tradição funcionava por ali: a casa
estava bem mais cheia do que já viu nos centros que frequentou – lembrou que
eles eram menores, mas os templos, ainda mais detalhistas e suntuosos. Riu
lembrando que a amiga carioca que conheceu no centro classificava o budismo de hobby de rico: menores e mais polpudas doações deviam dar conta dos templos
super trabalhados. Já foi em centro com valores pré determinados para os
ensinamentos. E o que ia agora tinha a liberdade de fazer a contribuição
voluntária que pudesse. E a igreja continuava passando a cestinha de
sempre. Devia dar certo, pois ela era familiar, continuava como quando foi meia
dúzia de vezes, pois ainda era bem conservada. Achou digno o padre prestar conta das
entradas e saídas da casa.
Quando
falaram no papa, torceu o nariz, achava que era fascista, nazista. Ouviu sobre
os jovens que vinham de fora e pensou se vinham estudar ou o que? Quis
encontrar os colegas de bairro e lembrou das críticas dos que só iam à missa
socializar. Como sempre, achou que as crianças compunham o mais divertido - tamanha a espontaneidade. Se interessou muito mais pelo sangue que pelo corpo
de Cristo – afinal era uma devota de Baco nas empreitadas culinárias. Mas só
socializaram o pão mesmo. Quando falaram em batizado teve que reclamar com a
mãe que ela não estava no seu. Justificou que tinha que ser carregada. Não
concordou com a passagem bíblica que falava em “não reclamar do salário” e
lembrou dos amigos sociólogos que estudam o quanto a religião é eficiente para
que as pessoas se mantenham em seus cabrestos. Mas lembrou de ter escutado quem entende que uma primeira tradução já perde 30% de seu conteúdo inicial. Ali devia ter pelo
menos 60% de “desvirtuamento da mensagem original”.
O trecho
“queimará a palha com fogo que nunca se apagará” chamou a atenção, mas não entendeu, teve que pedir explicação depois. Fez
quase uma meditação: aproveitou as músicas para treinar ritmo com as palmas. Cismou
que estava meio debochada no momento do louvor e fez como na yoga: relaxou para ficar confortável. Falou
sozinha com o que entendeu e o que não compreendeu do que era dito, cantado.
Mas lá pelas tantas, como diria o Osho “fizeram com que deixasse a mente esperando na
árvore”. E aquela parte do corpo que parece ser só mística, acreditou de novo.
Depois de mais de um mês e meio se sentindo “à deriva”, "sem ninguém por nós", "numa vida que era um engodo com alguns momentos de idílio".. Falou com o que havia de divino no universo, nela,
disse o que queria, o que precisava. E no final “pegou o padre para Cristo”:
tirou dúvidas, brincou, soube das novidades, fez sugestões. Foi acolhida como
se fosse uma antiga frequentadora, foi bastante estratégico da parte dele. Para ele, não reclamar do salário tinha a ver
com as pessoas que fazem baixo rendimento render, ao contrário de algumas que
tiram salários melhores e nunca é suficiente. Lembrou da colega com salário mínimo, carro, barraco, filho... Ok, o pai dele paga praticamente tudo. O padre contou como enxugou as contas da igreja e ela pediu para ele dar oficinas desse milagre. Mas depois, investi gando, ele só podia ser virginiano: a mãe dela também faz aquele milagre da multiplicação com qualquer coisa que entre em caixa.
Voltou com a mãe pela frente da maior favela de São Paulo,
comemorou um pouco a vitória do Timão, mas os ouvidos cansaram e a imagem da manhã
é a de um menininho com camisetinha do Corinthians tampando os ouvidos por
causa dos fogos. Pena que a câmera não funcionou! Se divertem em tudo que é lojinha, mural, burburinho popular.
Faz a raríssima e curadora sesta matutina. Mata a saudade de parentes queridos,
namora com o tablet do primo e olha enviesado para o presente de loja com mão
de obra análoga à escravidão – mas fazer o que, cavalo dado não se olha os
dentes. Volta mergulhando numa dorzinha de quem desconfia não aguentar mais
sonhos desandarem, queria abrir a porta do carro e voar para cessar aquela ladainha estúpida de sempre, dorme lavando o rosto, se perguntando "quem é acha que dá para aguentar mais expectativa indo para o ralo? Estou de novo ligando para o congestionado telemarketing do céu, ficando na espera e vai cair a ligação?" Mas acorda talvez com uma resposta divina:
“você não sabe do que Deus está te livrando”.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
Peça perdida do quebra-cabeças
Ralar o joelho dói
e sentir mareada
dos naufrágios anteriores
desgasta o otimismo zodiacal
E essa querência de rede
A precisão de estofo
O descômodo desencaixe
visto pelos fora do eixo
como saudável
Mas anos depois
explicita essa necessidade
de pertencimento
Só não sei se minha mesma
ou de tudo e todos
que nos enlouquecem coletivamente
ao nosso redor
e sentir mareada
dos naufrágios anteriores
desgasta o otimismo zodiacal
E essa querência de rede
A precisão de estofo
O descômodo desencaixe
visto pelos fora do eixo
como saudável
Mas anos depois
explicita essa necessidade
de pertencimento
Só não sei se minha mesma
ou de tudo e todos
que nos enlouquecem coletivamente
ao nosso redor
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Dança indiana como terapia corporal
O teste drive de Bollywood dance remeteu ao filme Bollywood Dreams. E bem, ao que tudo indica é um pré requisito para tentar a vida na indústria de filmes indiana, logo não há a menor chance de concorrer com as aspirantes a estrelas locais. Confessa para a professora que não tem coordenação, mas ela consola com o que parece ser óbvio, só que nenhum mestre deixou isso tão explícito antes:
- Isso a gente não tem mesmo, nós construímos.
Não pega metade dos movimentos de mãos, pernas, braços e cabeça, mas só de ouvir aquelas músicas que parecem ter um que sagrado, já se sentiu praticamente no Taj Mahal. Fica chocada com a professora girando o joelho naquele chão de madeira: deve fazer aquilo há gerações. Mas para tentar, precisará de joelheiras, pois a coleção de roxos pelo corpo já está de bom tamanho.
Queria ficar no rumo do ventilador, pois como classifica a medicina ayurvédica, deve ser estupidamente pitta (inacreditavelmente calorenta). A paisagem de fundo era o congestionamento da Av. Domingos de Moraes, mas não saberia definir quem tinha os movimentos mais precisos e trabalhados: a professora Gyaneshree ou a dançarina Maíra.
Foi tentando se encaixar aos mudrás e detalhados deslocamentos: sentiu um quê de dança espiritual ali e olha que não está acreditando em nada há quase um mês e meio. Mesmo com as paradas periódicas para tirar dúvidas e conversas, sentiu uma avalanche de ... serão endorfinas ou serotoninas? Para quem nadou e caminhou a vida inteira, de repente sentir que a dança traz reações novas é mágico.
A outra dançarina tinha músicas indianas no celular: queria receber todas, por como toque do aparelho, recebimento de mensagem... Não consegue começar a fazer algo sem se envolver até a medula, abraçar com uma empolgação juvenil tudo que traz essa realização intangível, esse ganho não mensurável, esse cansaço gratificante de experimentar "deixar a cabeça na árvore" e virar a própria dança.
Os sons e as expressões tão característicos, o jeito da professora, remeteu à colega indiana que teve no trabalho 3 anos atrás, à novela Caminho das Índias, o quanto diziam que não era bem como a Globo mostrava, o restaurante indiando Tandoor e o de dar água na boca Gopala. É uma atmosfera de cheiros, sons, cores, gostos, não se pode dizer que ancestral, mas que reverbera num canto interior escondido, como quando ouviu mantras pela 1a vez e na segunda já saiu cantando.
Como esta professora é um presente da deusa das artes Sarasvati, revelou que dá aulas de Katak, uma dança clássica indiana que colabora com a arte dos contadores de histórias, no Centro Cultural da Índia, às quartas e sextas às 18h30, nos Jardins, de graça: http://dancaindianabrasil.blogspot.com.br/2011/10/aulas-de-kathak-no-centro-cultural-da.html.
O ritmo conseguiu milagres significativos: deixou a verborrágica mais contemplativa, a "corta pulsos" mais otimista...
- Isso a gente não tem mesmo, nós construímos.
Não pega metade dos movimentos de mãos, pernas, braços e cabeça, mas só de ouvir aquelas músicas que parecem ter um que sagrado, já se sentiu praticamente no Taj Mahal. Fica chocada com a professora girando o joelho naquele chão de madeira: deve fazer aquilo há gerações. Mas para tentar, precisará de joelheiras, pois a coleção de roxos pelo corpo já está de bom tamanho.
Queria ficar no rumo do ventilador, pois como classifica a medicina ayurvédica, deve ser estupidamente pitta (inacreditavelmente calorenta). A paisagem de fundo era o congestionamento da Av. Domingos de Moraes, mas não saberia definir quem tinha os movimentos mais precisos e trabalhados: a professora Gyaneshree ou a dançarina Maíra.
Foi tentando se encaixar aos mudrás e detalhados deslocamentos: sentiu um quê de dança espiritual ali e olha que não está acreditando em nada há quase um mês e meio. Mesmo com as paradas periódicas para tirar dúvidas e conversas, sentiu uma avalanche de ... serão endorfinas ou serotoninas? Para quem nadou e caminhou a vida inteira, de repente sentir que a dança traz reações novas é mágico.
A outra dançarina tinha músicas indianas no celular: queria receber todas, por como toque do aparelho, recebimento de mensagem... Não consegue começar a fazer algo sem se envolver até a medula, abraçar com uma empolgação juvenil tudo que traz essa realização intangível, esse ganho não mensurável, esse cansaço gratificante de experimentar "deixar a cabeça na árvore" e virar a própria dança.
Os sons e as expressões tão característicos, o jeito da professora, remeteu à colega indiana que teve no trabalho 3 anos atrás, à novela Caminho das Índias, o quanto diziam que não era bem como a Globo mostrava, o restaurante indiando Tandoor e o de dar água na boca Gopala. É uma atmosfera de cheiros, sons, cores, gostos, não se pode dizer que ancestral, mas que reverbera num canto interior escondido, como quando ouviu mantras pela 1a vez e na segunda já saiu cantando.
Como esta professora é um presente da deusa das artes Sarasvati, revelou que dá aulas de Katak, uma dança clássica indiana que colabora com a arte dos contadores de histórias, no Centro Cultural da Índia, às quartas e sextas às 18h30, nos Jardins, de graça: http://dancaindianabrasil.blogspot.com.br/2011/10/aulas-de-kathak-no-centro-cultural-da.html.
O ritmo conseguiu milagres significativos: deixou a verborrágica mais contemplativa, a "corta pulsos" mais otimista...
domingo, 9 de dezembro de 2012
Navegação rio acima
Os 35 sangram
de vertigem e falta de sono
Os 35 sujam
o que não quero nem preciso mais
Os 35 doem
a descoberta de que a escolha sempre foi minha
Mas me agarrei a um sonho mofado
Os 35 ralam
de tombos e amores enviesados
em que matei plantas promissoras por afogamento
Os 35 dão um vácuo
de desmamar duma dieta tóxica
e pedir abertura em relacionamentos viciados
Os 35 vazam
o que não encaixa mais
e o que tenho de mais apaixonado em mim
Os 35 não tem limite
até que o corpo me breca
Os 35 me lavam de água salgada
só que depois de uma longa jornada noite adentro
é reconfortante
Os 35 levaram a ânsia
de sorver a vida em goles sôfregos
Os 35 cantam
com o avesso do meu próprio sofrimento
Os 35 acham o tempo que passou em mim bonito
Os 35 adiantaram presentes e adiaram desejos
Os 35 tem menos confete
Mas muito, muito mais a comover
Evoé
de vertigem e falta de sono
Os 35 sujam
o que não quero nem preciso mais
Os 35 doem
a descoberta de que a escolha sempre foi minha
Mas me agarrei a um sonho mofado
Os 35 ralam
de tombos e amores enviesados
em que matei plantas promissoras por afogamento
Os 35 dão um vácuo
de desmamar duma dieta tóxica
e pedir abertura em relacionamentos viciados
Os 35 vazam
o que não encaixa mais
e o que tenho de mais apaixonado em mim
Os 35 não tem limite
até que o corpo me breca
Os 35 me lavam de água salgada
só que depois de uma longa jornada noite adentro
é reconfortante
Os 35 levaram a ânsia
de sorver a vida em goles sôfregos
Os 35 cantam
com o avesso do meu próprio sofrimento
Os 35 acham o tempo que passou em mim bonito
Os 35 adiantaram presentes e adiaram desejos
Os 35 tem menos confete
Mas muito, muito mais a comover
Evoé
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Semi nova
Ficar mais velha em dezembro é adiantar as promessas de ano novo. Vou fazer exercício com maior frequência. Meditar mais. Parar de comer a unha. Não me render mais aos "bobajitos" quando estiver com fome emergencial Abusarei menos da família. Não adiarei ideias e projetos profissionais.
Só que o primeiro presente do dia foi um tombo.
Vai o que, cara pálida? Há quantos anos mesmo escuto essas promessas? Preciso mesmo refrescar sua memória?
Daí comecei o dia de maneira inusitada: lavando louça, varrendo casa, dando um trato no banheiro, jogando lixo, pondo roupa na máquina e jogando o que não servia, não seria buscado, o que cutucava minha gastrite só de olhar. Até a trilha foi inovadora: um CD de samba ganho e nunca escutado - não é a trilha dos meus sonhos. mas serve bem para quando baixa a Amélia em mim - coisa rara!
Tem uma música, se não me engano da Zélia Duncan "não me reconheço mais... Suas roupas são outras... soltas de mim... as palavras da sua boca". Tem um estranhamento depois de comprar meu primeiro anti idade. E de repente, não mais do que de repente, querer ir à 25 de Março não para comprar figurino, acessório de cena, cenário, mas porta sabonete, tempero, medidor! A dona de casa demorou, mas chegou. Antes tarde do que mais tarde!
Como uma das resoluções internas é não reclamar mais, faço o balanço das vitórias diárias: a saúde voltou, tem departamento que estou parecendo até "aborrescente", agora cozinho ainda que apanhe das receitas e adaptações, os amigos mesmo mandaram bem nos últimos tempos, fiz uns três cursos de teatro este ano, não produzi metade do ano, mas estico a verba até 2012 acabar, cantei como estava querendo, levei a tragicomédia que me gerou para a terapia, não me deixei levar por impulsos de 5a categoria, aos trancos e barrancos estou voltando a me exercitar na unha, meditando o quanto meus 220 voltz me permitem, pela 1a vez curti minha entressafra, matei a lombriga da cerâmica, encerrei literariamente um ciclo insistente, deixei de dar uns murros em ponta de faca, neste fim de ano ri de uns dramas, voltei a estudar dramaturgia, ensaiei retomar meu projeto, cortei relações duvidosas e pelo menos me empenhei para me reconciliar com a comunicação.
Mas como brincou a professora de dramaturgia: onde é que isso vai dar? Lugar nenhum. Mas pela primeira vez, essa constatação não causa angústia. Tá, ninguém aguenta mais meus "Deus existe, mas não funciona", "fez uma experiência com a gente não deu certo e formos abandoados", "existe, mas não se envolve", "estamos à deriva", "a vida é um engodo com alguns momentos de idílio", mas o que posso fazer se é o clima que me bate depois de 21393218934 acordos em que entrei com a buzanfa e eles com o pé? Ok, a vida é impermanente, mas a minha é falta de educação. E como diz o provérbio sagitariano, já te disse mais de um milhão de vezes que nunca exagero. Oops. Não ia reclamar. Mas esta ironia que me é característica é tão irresistível.
Vou provar que é um ano novo. Caminhar. Meditar. Cozinhar e dar certo. Cortar o quanto meus pais são invasivos. Pintar a unha. Tirar umas possibilidades da gaveta. Preparar uns livros pra mandar para as editoras. Por limite quando não der conta. Aproveitar o Parque Chico Mendes e o Sesc São Caetano. Brincar mais com o Bidu. Ver mais minha família. Dar menos meu fígado para os trabalhos.
Vou?
Feliz promessas novas ruiva de estado de espírito.
P.S.: Terminei a faxina mudando tudo de lugar. A terapeuta diz que isso é disposição para renovar as emoções.
Só que o primeiro presente do dia foi um tombo.
Vai o que, cara pálida? Há quantos anos mesmo escuto essas promessas? Preciso mesmo refrescar sua memória?
Daí comecei o dia de maneira inusitada: lavando louça, varrendo casa, dando um trato no banheiro, jogando lixo, pondo roupa na máquina e jogando o que não servia, não seria buscado, o que cutucava minha gastrite só de olhar. Até a trilha foi inovadora: um CD de samba ganho e nunca escutado - não é a trilha dos meus sonhos. mas serve bem para quando baixa a Amélia em mim - coisa rara!
Tem uma música, se não me engano da Zélia Duncan "não me reconheço mais... Suas roupas são outras... soltas de mim... as palavras da sua boca". Tem um estranhamento depois de comprar meu primeiro anti idade. E de repente, não mais do que de repente, querer ir à 25 de Março não para comprar figurino, acessório de cena, cenário, mas porta sabonete, tempero, medidor! A dona de casa demorou, mas chegou. Antes tarde do que mais tarde!
Como uma das resoluções internas é não reclamar mais, faço o balanço das vitórias diárias: a saúde voltou, tem departamento que estou parecendo até "aborrescente", agora cozinho ainda que apanhe das receitas e adaptações, os amigos mesmo mandaram bem nos últimos tempos, fiz uns três cursos de teatro este ano, não produzi metade do ano, mas estico a verba até 2012 acabar, cantei como estava querendo, levei a tragicomédia que me gerou para a terapia, não me deixei levar por impulsos de 5a categoria, aos trancos e barrancos estou voltando a me exercitar na unha, meditando o quanto meus 220 voltz me permitem, pela 1a vez curti minha entressafra, matei a lombriga da cerâmica, encerrei literariamente um ciclo insistente, deixei de dar uns murros em ponta de faca, neste fim de ano ri de uns dramas, voltei a estudar dramaturgia, ensaiei retomar meu projeto, cortei relações duvidosas e pelo menos me empenhei para me reconciliar com a comunicação.
Mas como brincou a professora de dramaturgia: onde é que isso vai dar? Lugar nenhum. Mas pela primeira vez, essa constatação não causa angústia. Tá, ninguém aguenta mais meus "Deus existe, mas não funciona", "fez uma experiência com a gente não deu certo e formos abandoados", "existe, mas não se envolve", "estamos à deriva", "a vida é um engodo com alguns momentos de idílio", mas o que posso fazer se é o clima que me bate depois de 21393218934 acordos em que entrei com a buzanfa e eles com o pé? Ok, a vida é impermanente, mas a minha é falta de educação. E como diz o provérbio sagitariano, já te disse mais de um milhão de vezes que nunca exagero. Oops. Não ia reclamar. Mas esta ironia que me é característica é tão irresistível.
Vou provar que é um ano novo. Caminhar. Meditar. Cozinhar e dar certo. Cortar o quanto meus pais são invasivos. Pintar a unha. Tirar umas possibilidades da gaveta. Preparar uns livros pra mandar para as editoras. Por limite quando não der conta. Aproveitar o Parque Chico Mendes e o Sesc São Caetano. Brincar mais com o Bidu. Ver mais minha família. Dar menos meu fígado para os trabalhos.
Vou?
Feliz promessas novas ruiva de estado de espírito.
P.S.: Terminei a faxina mudando tudo de lugar. A terapeuta diz que isso é disposição para renovar as emoções.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
De como driblar petulância do JK Iguatemi
Depois de uma entrevista com fome em meio a todos os prédios comerciais do mundo te oprimindo num sol esturricante, com medo de desmaiar até o trem, a única possibilidade de evitar cair como na semana anterior foi parar forçosamente no Shopping JK Iguatemi. Lembra do dia em que passou na Daslu e trabalhava perto, só para conferir de perto a petulância local. São vizinhos.
Para combinar com a cidade em que está e o cruzamento da Marginal com a avenida que o batiza, este centro de compras é pensado para os carros. Encontrou a entrada de pedestres, não sem antes passar sem escapatória por uma saída de ar e se sentir a Marilyn Monroe ruiva, com a saia querendo grudar no seu pescoço. Ao menos não havia seguranças por perto para rir do mico. Já os carros... Bem, nem tudo pode ser perfeito.
Acreditou que tinha entrado só para descobrir os restaurantes que frequentava quando era repórter de TI e negócios e as fontes eram generosas: não podia ser possível que houvesse opção à altura do seu desemprego temporário. Mas acabou encontrando uma natureba razoável. Avisaram que o crepe era pequeno. Adicionou um suco com desconto no outro cartão. Apostou na recomendação da amiga que quando é massa integral, não está morrendo de fome menos de três horas depois. Bem, seu estômago parece aquele leão mugindo no começo dos filmes da MGM, quer dizer: não foi bem assim.
Acabou andando mais do que deveria no shopping. Lembrando quando a tia a levava nestes passeios que não eram para o seu bico, mas gostava da companhia dela mesmo assim: foi quem ensinou a gostar da Madonna e do U2 e não herdar os preconceitos provincianos do pai. Juntas investigaram o que vinha na cobertura do sorvete que na época era o único com farofa. A outra tia levou as sobrinhas à exaustão no Ibirapuera e, engraçado, o legal nem era a visita em si, mas simplesmente pegar o ônibus e tomar sorvete de brigadeiro na Americanas: obviamente nunca mais teve o mesmo gosto.
Como se sente oprimida no Park Shopping São Caetano perto de casa, achou que lá seria pior. Às vezes não entende como a mãe gosta só de ver vitrine, já que se sente uma consumista enrustida - sempre encontra coisa que gostaria e tem que voltar para casa e fazer chá de alho para matar as lombrigas. Desta vez suspirou aliviada: nem tanto, só gostou de dois vestidos, que juntos custavam mais de R$ 1000.
Lembrou da professora Cristina Mutarelli, pois os frequentadores lembravam uma definição dela: "tinham uma cara de quem comeu muita proteína na infância". E uns figurinos de quem foi muito para a Disney na aborrescência. Assim como os mendigos são invisíveis para muitos da classe mérdia, também se sentiu invisível para eles.
Muito lustre exagerado, até na drogaria. Tinha umas lojas misteriosas, com vitrine cheia de taças e nem dentro ou fora do shopping foi descoberta uma entrada para ela (ficava na saída). Outras até tinham esse mistério, mas avisavam na entrada que ainda estavam fechadas. Lembrou do compadre que tinha estudado técnicas de varejo, pois viu aplicada uma lá: os chãos parecem ter sido lavados com overdose de cândida, que é para dar medo de cair, andar devagar e ver tudo quanto é vitrine.
Dinheiro não é sinônimo de bom gosto. Uns laços dourados estavam ligeiramente over atrás de uns vidros. Outras tinham aquelas paredes de um quase irregular proposital, que a tia que levou muito para esse tipo de passeio também fez na casa do interior. Viu uma com uma exclamação meio carnavalesca que achou bem bolada. Muitas lembravam editorias de moda, como a que ilustra esse post.
Ficou chocada por encontrar uma Hering. Pensou que fosse quase marca de pião de chão. E não se conformou de achar mais de uma Zara. Eles não trabalhavam com mão de obra escrava? Não vai acontecer nada com estes comerciantes mercenários? A vista de São Paulo lá de cima é muito da bonita, mas tem que ter "olhos para ver".
Como rico gosta de joia hã? Zilhares de joalherias. Se tivesse dinheiro compraria aquelas bio jóias, que são tão absurdamente bonitas, misturando materiais naturais e preciosos, que quando divulgou conseguiu simplesmente o Jornal Nacional com o projeto. Uma coisa exclusiva, rara, que dava exposição e a mídia mais disputada do País. Mas gosto não se discute, se lamenta!
A praça de alimentação tinha uma coisa rara neste setor: espaço entre as mesas e cadeiras. E era tanta madeira nos restaurantes que metade da Mata Atlântica restante deve ter servido para tornar essa região com menos cara de "comendo somos todos iguais". Qual era o filósofo que achava que devíamos nos esconder para comer, pois era tão vexatório quanto ir ao banheiro?.
Entrou num estande da Samsung encantada com uns desenhos de rostos e uma espécie de móbile intitulado Art Gallery. Mas como era de se esperar em se tratando de Iguatemi, desconfiaram que a visitante não tinha cacife para mais do que xeretar e foi deixada às moscas. Não resistiu e perguntou para um vendedor, que disse se tratar somente de uma decoração. Está explicado. Falar o que com quem gosta mais do enfeite do que do produto?
Claro que não conhecia a maioria das lojas, mas era de se esperar, em se tratando de uma pessoa cujo guarda roupa é composto de peças apertadas em cima da prima magérrima e peças folgadas em baixo da tia larga. Mesmo assim considera-se uma privilegiada por ter parentes de bom gosto, consumistas e generosas, já que a grande maioria do que ganha ela ama de paixão. E se elas que podem circular nesses circutos de compras abastados não falam da maioria dessas marcas, tem coisa melhor e mais barata.
O mais engraçado foi ver na entrada um carro com uma marca e cismar que a Gucci tinha personalizado um Ford Ka. Não podia ser, a demostradora falou que eram pouquíssimas unidades exclusivas, essa marca tem o que com carro popular? Na saída teve que apurar esse ruído na comunicação: era o 500 (leia com sotaque italiano). Ah tá. Se é assim, então faz sentido.
sábado, 24 de novembro de 2012
Voltando ao movimento das senzalas
O batuque do Paulo Eduardo Silva, do Maria Sol, no Sesc São Caetano nesta sexta já colocava naturalmente o corpo numa ginga ancestral. Mas a didática de Kiusam de Oliveira foi libertando nossos músculos, que inconscientemente ainda estavam cativos. Desde tempos imemoriais? O desafio era sair da postura eurocêntrica, a que nos ensinaram como ideal e experimentar os braços quase como asas, depois as pernas meio que na diagonal e os pés, estes reafirmando que sim, esta terra é mais do que nossa e esta é a corporeidade na qual ficamos praticamente "em casa", num cansaço bom de sentir ao fim da noite.
Entre rodas e trombadas, fomos construindo coletivamente uma gestualidade do grupo, sem certos ou errados, mas com identidade afro brasileira e mais genuína que nunca. Nada de por reparo na dança alheia, cada uma é legítima à sua maneira e vem se libertando como pode, como consegue, como dá. Às vezes em suaves prestações. Às vezes, no susto, de sopetão.
Foi simbólico na semana do orgulho negro, em que desconfio que minha predileção tenha mais a ver com uma quase birra "aborrescente" de alfinetar o pai com minha suposta preferência no âmago do racismo inconfesso dele, que tenha de repente me sentido tratada quanto as escravas da senzala pelos senhores da casa grande (claro que guardadas as devidas proporções, por elas terem teoricamente menos escolha), quando subitamente o cheiro que me eriçava tenha começado a chegar mais neutro no meu nariz. Ouço a professora dizer que tinha "quequê", um certo charme no balanço do quadril, dias depois de sentir que ele rebolava sim na aula de dança tribal, apesar de uma preparadora vocal ter me mandado "descabaçar" para um papel de prostituta três anos atrás.
Encerramos brincando com esta, que é a música original de uma brincadeira ligeiramente diferente na infância e descobrindo que foi adulterada para tornar o corpo mais contido e o negro mais subjugado: "guerreiros Nagô jogavam caxangá. Gira, salta, deixa Canjerê ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" e o verso final era uma deixa e um acobertamento para a fuga.
P.S.: relevem os erros entendidos em afro assuntos de plantão, pois no Google não consta a grafia correta de nossa história, agora "contada de baixo".
Entre rodas e trombadas, fomos construindo coletivamente uma gestualidade do grupo, sem certos ou errados, mas com identidade afro brasileira e mais genuína que nunca. Nada de por reparo na dança alheia, cada uma é legítima à sua maneira e vem se libertando como pode, como consegue, como dá. Às vezes em suaves prestações. Às vezes, no susto, de sopetão.
Foi simbólico na semana do orgulho negro, em que desconfio que minha predileção tenha mais a ver com uma quase birra "aborrescente" de alfinetar o pai com minha suposta preferência no âmago do racismo inconfesso dele, que tenha de repente me sentido tratada quanto as escravas da senzala pelos senhores da casa grande (claro que guardadas as devidas proporções, por elas terem teoricamente menos escolha), quando subitamente o cheiro que me eriçava tenha começado a chegar mais neutro no meu nariz. Ouço a professora dizer que tinha "quequê", um certo charme no balanço do quadril, dias depois de sentir que ele rebolava sim na aula de dança tribal, apesar de uma preparadora vocal ter me mandado "descabaçar" para um papel de prostituta três anos atrás.
Encerramos brincando com esta, que é a música original de uma brincadeira ligeiramente diferente na infância e descobrindo que foi adulterada para tornar o corpo mais contido e o negro mais subjugado: "guerreiros Nagô jogavam caxangá. Gira, salta, deixa Canjerê ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" e o verso final era uma deixa e um acobertamento para a fuga.
P.S.: relevem os erros entendidos em afro assuntos de plantão, pois no Google não consta a grafia correta de nossa história, agora "contada de baixo".
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
Depois de virar a própria escultura, eis que me vi dança
Esta está sendo a melhor entressafra da última década e meia: caminhada, capoeira angola, escultura, dramaturgia, bolero... Sabe quando é uma curtição ficar com você mesma? Uma espécie de sabático express, pois tudo que é bom, dura esquema fast food. E pensava que a delícia da aula de cerâmica seria a modelagem: cara, sou uma Barbie à paisana - fico com aflição das unhas secando e sujando, mas não espalha que pega mal entre os bicho grilo da comunidade... Curti mesmo foi pintar uma releitura de máscara que eu fiz (só sendo de minha autoria mesmo para pendurar na parede) e encher de cores minha mandala bastarda (nos estranhamos hoje, mas ela estava batizada, não pude negar). Mergulhei tanto no processo com o engobe colorido, o pincel e as peças em estado de couro que a professora quase teve que me resgatar do meu autismo criativo. Quem diria, a hiper ativa concentrada! Só as artes plásticas salvam!
E depois, fui descobrir qual era a da dança tribal. Ela me redimiu da humilhação anos antes de achar que tinha que nascer com novos quadris na dança do ventre. O que uma dançarina com didática não faz? Lembrei da minha contação de histórias do sagrado feminino, como estes movimentos cairiam bem ali. O grupo fez uma apresentação chamada Faces no teatro do Arquidiocesano três anos atrás (cáspita de Google, nada de vídeo ou fotos), com breve locução e danças homenageando Salomé, Joana D´Arc, Anita Garibaldi... Imagine que desbunde! Lembrei que na minha apresentação de Miseráveis no Teatro Ruth Escobar sofri horrores com a preparadora vocal mandando rebolar com uma delicadeza hitleriana, para descobrir dois anos depois nas preliminares do Processo, com o diretor porta estandarte do pós dramático que TODA MULHER REBOLA e que graças à nossa bacia, provavelmente preparada para parir, não conseguíamos andar neutro como um exercício propunha. Ah, vá!
Rebolei horrores uma hora inteirinha! E aquele braço meio em mudra, meio preparando vôo, que às vezes lembrava alça de vaso e noutras movimento de dança indiana? Espero dar tchau ao músculo do adeus. Contrai a barriga! E com o vestido impróprio que estava para a prática, que esvoaçava para lá e para cá, nunca me senti tão feminina! Louca para retomar meu trabalho quase autoral de contação. Mulherices. E nem estou naqueles dias!
Falei para a profe que pode arrumar mais aula, ganhar uma grana e nos chamar para o open house da cobertura dela em pouco tempo marqueteirando o nome para dança feminista. Ou da femilindade. Oferecer em associações de mulheres. E viva o poder do sexo nada frágil!
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
A Ruivice é um Estado de Espírito
Independente de Deus ter dado ou o cabeleireiro ter misturado. A alma é proporcionalmente ruiva conforme o quanto dói ser você mesma. Batalhar pelo que gosta pagar suas contas. Não abrir mão dos sonhos mesmo quando já se sente semi nova e com Deus e o mundo de plantão para te cobrar seguir o script que a sociedade exige à risca: carreira, filhos, estabilidade.
Depende do quanto você se atira no abismo. Das paixões. Sejam elas corporativas ou de pele. Com o quanto se arrisca. Quebrar a cara e ser puxada o tapete. Do quanto abraça. Causas e as pessoas. Do quanto se entrega à vertigem convulsiva. Com as crianças e os cachorros - de quatro e duas patas. Do quanto foge ao padrão. De roupa, casa, pensamento e linha de raciocínio.
Com o quanto se recusa. A aceitar o morno, o protocolar, o cinza e o tradicional. Com o quanto reinventa o clássico. Com o quanto personaliza o visual, o texto, a crença, o beijo. Com o quanto foge às regras. Do trabalho, na família, dentro do bairro, do que ri, na cozinha, com a mochila nas costas e refazendo os planos.
A imaginação é que dá o tom da ruivice, não a tom do seu cabelo no berço. A mudança dos planos. A capacidade de perceber o quanto ainda não sabe. E querer descobrir. A paixão por outras culturas. E tudo que é novo, diferente, visto por outro ângulo, pensado de outra maneira, desconstruído, remodelado, reinventado, estilizado.
A disputa de foice pelo que acredita. A capacidade de se por no lugar do outro. O quanto deixa encher os olhos d´água. O sentir as borboletas dando rasantes no estômago. Como se fosse a primeira vez. O defeito de fábrica de acreditar nas pessoas. Como se ainda tivesse dentes de leite. A empolgação juvenil. O permitir que os olhos brilhem. Uma infinidade de vezes.
Olhar para dentro de si. Com medo e uma curiosidade de pré escola. Respirar até a entrada e saída do ar se equilibrarem. Não saber como assentar seus próprios ventos internos, mas sem ter ideia como, acalmar os dos outros. Se doar. Como se ainda não tivesse se sentido sem chão. Botar fé como se ainda não tivessem esvaziado o suficiente aquela original de fábrica.
Se recusar a alisar os cachos. Esquecer do anti idade. Não deixar a alma envelhecer. Se apegar ao perfume que remete a quando foi feliz e não sabia. Preferir a contramão. Se cansar de nadar contra a correnteza, mas não conseguir a ir a favor da maré. Voltar a ser a criança que nunca deixou de canto e relegar a maldade aos olhos alheios.
Lembrar do creme, esquecer da unha. Recordar da maquiagem, relevar a depilação. Mergulhar em leave in, desconsiderar a moda. Gostar do óculos, esquecer o brinco. Curtir o chapéu, não fazer ideia de onde está a corrente. Ter anéis do teatro, pulseirinha com história para contar, mas... onde foi parar o presente que ganhou e amou?
Não saber fazer contas. Querer aprender tudo. Fugir da lógica do lugar comum. Precisar conhecer o mundo. Também ter ouvido de um anjo torto quando nasceu "vai, ser torta na vida". Ter uma fome que não passa. E uma febre que se recusa a ser medida por termômetros. Uma ânsia de sorver a vida em grandes goles. E ter medo. Que não dê tempo.
Depende do quanto você se atira no abismo. Das paixões. Sejam elas corporativas ou de pele. Com o quanto se arrisca. Quebrar a cara e ser puxada o tapete. Do quanto abraça. Causas e as pessoas. Do quanto se entrega à vertigem convulsiva. Com as crianças e os cachorros - de quatro e duas patas. Do quanto foge ao padrão. De roupa, casa, pensamento e linha de raciocínio.
Com o quanto se recusa. A aceitar o morno, o protocolar, o cinza e o tradicional. Com o quanto reinventa o clássico. Com o quanto personaliza o visual, o texto, a crença, o beijo. Com o quanto foge às regras. Do trabalho, na família, dentro do bairro, do que ri, na cozinha, com a mochila nas costas e refazendo os planos.
A imaginação é que dá o tom da ruivice, não a tom do seu cabelo no berço. A mudança dos planos. A capacidade de perceber o quanto ainda não sabe. E querer descobrir. A paixão por outras culturas. E tudo que é novo, diferente, visto por outro ângulo, pensado de outra maneira, desconstruído, remodelado, reinventado, estilizado.
A disputa de foice pelo que acredita. A capacidade de se por no lugar do outro. O quanto deixa encher os olhos d´água. O sentir as borboletas dando rasantes no estômago. Como se fosse a primeira vez. O defeito de fábrica de acreditar nas pessoas. Como se ainda tivesse dentes de leite. A empolgação juvenil. O permitir que os olhos brilhem. Uma infinidade de vezes.
Olhar para dentro de si. Com medo e uma curiosidade de pré escola. Respirar até a entrada e saída do ar se equilibrarem. Não saber como assentar seus próprios ventos internos, mas sem ter ideia como, acalmar os dos outros. Se doar. Como se ainda não tivesse se sentido sem chão. Botar fé como se ainda não tivessem esvaziado o suficiente aquela original de fábrica.
Se recusar a alisar os cachos. Esquecer do anti idade. Não deixar a alma envelhecer. Se apegar ao perfume que remete a quando foi feliz e não sabia. Preferir a contramão. Se cansar de nadar contra a correnteza, mas não conseguir a ir a favor da maré. Voltar a ser a criança que nunca deixou de canto e relegar a maldade aos olhos alheios.
Lembrar do creme, esquecer da unha. Recordar da maquiagem, relevar a depilação. Mergulhar em leave in, desconsiderar a moda. Gostar do óculos, esquecer o brinco. Curtir o chapéu, não fazer ideia de onde está a corrente. Ter anéis do teatro, pulseirinha com história para contar, mas... onde foi parar o presente que ganhou e amou?
Não saber fazer contas. Querer aprender tudo. Fugir da lógica do lugar comum. Precisar conhecer o mundo. Também ter ouvido de um anjo torto quando nasceu "vai, ser torta na vida". Ter uma fome que não passa. E uma febre que se recusa a ser medida por termômetros. Uma ânsia de sorver a vida em grandes goles. E ter medo. Que não dê tempo.
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
Fim de Tarde
Na fase em que tudo é para sempre
Soltamos faíscas protegidas por sombras
num ensaio do deságue
Sua urgência dançava sustos no meu maior órgão
Mas sua ironia encontrou sarcasmo à altura
A convulsão que nos provocávamos
levou quase uma vida
para ousar se entrelaçar outra vez
O preconceito branco do teu lado
me doía com ralado no asfalto
O palco mergulhar nas tuas raízes
te magoava como criança ferida
Tua nostalgia da terra nunca conhecida
me arrancava pedaços
Mas só sabíamos sentir aos solavancos
E carimbar nosso desejo
em algodão ou sarja
Era sempre um soluço
esse alvoroço mal disfarçado de amor
Ter voado mais longe que o imaginado
Às vezes ainda revira
esse baú de fotos em sépia
Soltamos faíscas protegidas por sombras
num ensaio do deságue
Sua urgência dançava sustos no meu maior órgão
Mas sua ironia encontrou sarcasmo à altura
A convulsão que nos provocávamos
levou quase uma vida
para ousar se entrelaçar outra vez
O preconceito branco do teu lado
me doía com ralado no asfalto
O palco mergulhar nas tuas raízes
te magoava como criança ferida
Tua nostalgia da terra nunca conhecida
me arrancava pedaços
Mas só sabíamos sentir aos solavancos
E carimbar nosso desejo
em algodão ou sarja
Era sempre um soluço
esse alvoroço mal disfarçado de amor
Ter voado mais longe que o imaginado
Às vezes ainda revira
esse baú de fotos em sépia
Expulsa do Quase Paraíso
Na época em que aumentava virtualmente a família indígena Kaiowá, uma plaquinha artesanal barrava o retorno dela para casa com um "não passe" disfarçado em "inoperante" no ponto de ônibus. Justamente quando tantos reafirmavam online suas raízes guaranis, que nada mais eram que um apoio à legítima reivindicação deles pela terra, a casa onde mora deixa de ser dela. Um toque de recolher amplia o alcance do chefe do tráfico local ou da prepotência policial? De qualquer forma, como uma Guarani Kaiowá de pele clara, também é despejada para a beira da estrada, desta vez da Tancredo Neves e ali, como os índios impedidos de plantar nos acostamentos, não pode armar tenda. Seu pai colocou meia vida de trabalho na casa que chama de sua, mas já não sabe se ela é da PM, dos ladrões ou se serve de abrigo a motoristas que temem ônibus incendiados. Pode voltar para casa de uma amiga, mas a roupa dela em seu corpo atesta que só "saímos de casa quando ela já saiu de nós". Ensaia um cochilo num banco de terminal urbano, mas comprova precisar de condições ideais de temperatura e pressão, embora se sinta uma intrusa em seu próprio bairro: não dormiria naquela firmeza metálica pouco convidativa. Lamenta o amigo de categoria ambígua fora do país, pois agora teria uma justificativa e tanto para pedir guarida na "pombalândia" em que mora (o conjunto em que mora diminuiu sua grandeza perto de onde ele vive). O cansaço para encarar baldeações e combinações telefônicas com outras amigas leva à saída mais previsível: voltar ao metrô, mudar depois para o trem, mudar de cidade e pegar outro ônibus, desviando da maior favela de São Paulo. Aumentou a via-crúcis para casa, mas ao menos no município vizinho, a circulação não tinha sido suspensa. Finalmente encontrou uma vantagem de morar na divisa. Virou a revista do avesso para se irritar menos de precisar pegar "uma jangada, um cipó e uma balsa". Não se abalou quando um passageiro reconheceu na publicação que lia um personagem de "trash movie". E comendo letrinhas ávida, mal percebe os altos e baixos da calçada que nunca viu uma guerra, mas também nunca perdeu seus buracos. Chega mais tarde, cansada e fazendo torcida organizada para os traficantes, policiais, incendiadores de ônibus e motoristas suspenderem batalhas no dia seguinte.
terça-feira, 6 de novembro de 2012
Quando nós ainda...
- Era das coisas mais previsíveis que amava nele. Como ficar a madrugada inteira brincando de Autorama, fazendo de conta que ainda estávamos na infância. - disse o gordinho que falava bem.
O cigarro circulou pela roda de amigos sentados no chão da praça.
- Nela não, gostava do menos óbvio. Como quando ela fugia ao roteiro previsível e não se besuntava de creme e perfume e tinha o cheiro dela mesmo. - o fofo era fora do padrão, mas "magnetizava" a maioria dali.
Ela, até então atraída pelo menos clichê da turma, tomou um solavanco: pô, bi... Toda a humanidade era concorrente! Recusou a oferta do cigarro:
- Depois que encontrei a respiração sem falta de ar, faço exercício respiratório até na fila do banheiro!
O gordinho bi até esqueceu de tragar com a personalidade dela dançando em meio à unanimidade pelo relaxamento fácil. Não resistiu:
- É verdade que agiliza o orgasmo?
- Bom isso já não depende só de mim. A não ser que a companhia da noite seja o dedo.
A roda se dispersou em risadas. Inesperadamente ela se acolheu nele:
- Tem outra blusa?
- Mas o frio passou.
- Quem está circulando ar coletivo pré aquecido pra dentro são vocês, não eu.
O gordinho a abraçou.
- Fico querendo sentir de novo aquele primeiro barato, dos dezesseis anos. - agora o acelerado era o saudosista.
- Só que nem você é mais o mesmo, nem a erva. - analisa a sarcástica.
- Na minha primeira vez, minha paixão de infância prometeu que até nosso amor ganharia outras formas. - relembra a mais tímida - Mas nunca senti nada!.
- Quando traguei pela primeira vez, meu pai ainda morava conosco e não precisava agendar nossos reencontros.- soluça o grilado.
- Conheci a maconha e Caraíva juntos pela primeira vez. Nunca haverá praia como aquela. - suspirou o que já dançava como se ninguém estivesse vendo.
- Selei uma amizade de adolescência com um baseado.- recordou a mais brava - Só que não nos vimos mais!
- Quando quero criar mais livremente, preciso de um beque. - divide a irriquieta.
- Só sei esquecer os lugares que não voltei e as pessoas que partiram com vinho. - conta a das tiradas inesperadas, ainda abraçada ao gordinho.
- Gente daqui a pouco teremos que passar um lenço e apagar o cigarro. - conclui a pé no peito da turma.
- Pode ser que encontre um fumo como o da minha adolescência...
- Se reencontrar o primeiro amor, acreditarei nele como antes?
- Podendo reencontrar meu pai sem bloquear agenda, não terá mais a graça de antes.
- Caraíva deve ter parado no tempo como aquelas redes que balançavam nas varandas em slow motion...
- Aposto que minha amizade dos catorze anos continua a mesma.
- O que estimula é a cada novo cheiro, bater outro barato e inventar de um jeito diferente.
- Como todo mundo resolveu divagar pra uma direção diferente, podíamos sair de fininho. - tentou o gordinho com a das sacadas impagáveis.
- Com ou sem erva?
- De cara limpa que deve ser até melhor.
- Sem nem um vinhozinho?
- Quem sabe?
- Só temo de antemão quando o próximo te convidar para apostarem corrida de Ferrorama.
- Ah, aposto que na primeira ocasião que te surpreenderem você também voa longe. - ele despistou.
Ele tinha razão.
Topou.
Mas se encheu de creme no dia seguinte. Só para se diferenciar.
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
Dor de amor corporativa
Sair de um trabalho apaixonante acarreta uma dor de amor
similar a dos finais de relacionamento. Todas as lições budistas sobre desapego
são esquecidas, como quando qualquer paixão nubla a visão da mais sensata das
pessoas. Poder escrever mais livre, exercitar outras inteligências, tira os pés do chão
de profissionais menos desavisados. Mergulha-se em queda livre, como quem se
doa a um trabalho pela primeira vez. Mesmo na septuagésima experiência. O expediente é esticado sem lembrar de
casa para arrumar, parentes para ver e projetos pessoais pulsando atenção personalizada. Contorna-se
problemas de estrutura com recursos próprios, esquecendo que adicionais por
isso não foram previamente combinados.
O texto é escrito e editado à exaustão, em busca das
melhores formas de se contar aquela história. Ralar além do combinado baixa a guarda, deixa escapar confissões, sem recordar que talvez o pé atrás fosse a melhor entrada em terreno
novo. Os paus técnicos geram medo do prejuízo que a dedicação pode sofrer, sem
saber que se a má vontade das operadoras campeãs de reclamações no Procon será
levado em conta. Os detalhes do trabalho são compartilhados com amigos com
empolgação quase infantil – que todo amor à primeira vista sofre de desvario adolescente, como quem publica um texto pela primeira vez e toda a experiência da
última década e meia serve só para a produção, não contribui com lembranças das
instabilidades do mercado.
As informações apuradas contribuem para o abençoado
aprendizado indireto que só esta profissão proporciona. Lembra da tia que
brinca que ela conversa de “colostro a física quântica”, de tanto que já
entrevistou, redigiu, revisou, pesquisou, editou. Ama ouvir quem entende muito
ou gosta demais de qualquer assunto, pois esses é que dão as melhores aulas, que
rendem os textos mais encorpados, que ela também gosta de ensinar, ainda que
seja com a palavra escrita. Quem tirava suas dúvidas era até interessante.
Lembra da vizinha que sempre fica com alguém no trabalho, “que é uma vingança
contra o capitalismo”. Não, ainda não é ativista tão radical assim.
Até passar vontade no bairro em que quase tudo é
“incomprável” tinha seu lado divertido: erguia os óculos e fazia uns passeios
com astigmatismo pelo local. Não captava os detalhes, ficava só com
umas vagas lembranças de cores, formatos distorcidos, nada despertava tão
fortemente impulsos de compra em quem está com planos maiores a longo prazo e
precisa segurar o bolso para realizá-los. Mas admitia que era uma perua
enrustida: tinha bom gosto, os rendimentos só não acompanhavam. Como se tudo
isso não bastasse, se divertia no expediente, descobria coisas novas e pode - mesmo que mais rápido que gostaria - trabalhar com a máquina que todos qualificavam como a top de linha.
Cortar o apego que ela criou a esse lugar descolado em que
inclusive trabalhou passando mal tem todos os tons de um drama amoroso:
lágrimas, ligações para os amigos, tentativas de entender o episódio na
terapeuta, saudades dos detalhes que envolveram a relação, necessidade de
purgar a dor sozinha e uso da raiva em projeto pessoal para sobreviver
emocionalmente. Ela inclusive esquece que já passou por isso, que as emoções
aflitivas são impermanentes, que enquanto estivermos no capitalismo será assim,
que o mercado é injusto e não tem vaga para todo mundo. Passa o dia seguinte de
pijama escrevendo até as oito da noite. O pai não entende que quem escreve não
tem um dom, tem uma sina e escreve para não morrer, pois é uma avalanche
interna de palavras, sensações, sonhos, conexões, lembranças... Amores.
Acaba de parir mais um: projeto pessoal antigo, empoeirado
na prateleira de sonhos, estimulada pela terapeuta e pelo que ouviu no término
da parceria que rendeu a dor de amor corporativa. O amigo tem razão: mesmo se ele
não ganhar dinheiro com isso, continuará desenhando. Mesmo que ela não seja
remunerada, as palavras teimam em sair, como cavalos selvagens precisando
ganhar o mundo. Nada impede de dar continuidade aos textos mais focados em sua
paixão que rendeu até a segunda faculdade, como idealizou lá longe, na pré
infância de seus sonhos inconfessos.
A Três
Quando se conheceram ficou meio com aquela sensação juvenil
de vertigem convulsiva. Conversaram, gostou do papo, mas o que mais justificava
a fixação inicial era o brilho dos olhos. De resto tinha aquela morenice que
sempre a atraiu. E os cabelos grisalhos, bem estes eram uma novidade em seu
repertório. Gozado que o que ele contava ia e vinha, com uma trilha sonora,
quase como nos filmes “água com açúcar” dos quais se dizia tão avessa. A
risada, o colega tinha razão, era a mais bela curva do ser humano. Mas enfim...
Num ambiente tão pouco propício... O sanatório daquela agência, que parecia
virada do avesso. De repente podia considerar a filosofia de vida da vizinha,
de a cada serviço conquistar mais um, pois era uma “vingança legítima contra o
capitalismo”. Na primeira virada de madrugada em que ele se safou e juraram por
rebeldia de pião recalcado que deixariam as mais pesadas tarefas para o retorno
dele, desejando “de lambuja“ uma hérnia de disco, deixou escapar:
-Eu me pré disponho a fazer massagem nele.
O que já seria suficiente para movimentar a “rádio pião”
interna. Mas um amargurado de plantão já cortou “seu barato”:
- Ele namora. Um cara.
E quem disse que isso era empecilho? Ela sempre fantasiou
perverter um gay. Como ainda não tinha acontecido, não sabia por onde começar.
Mas já estava naquela fase em que seguia a música “deixa estar que o que for
para ser vigora”, sinal de que sua ansiedade patológica estava a caminho da
cura. Riu sozinha quando percebeu que embora ainda roesse as unhas, já estava
praticando o que recomendava o colega “dá o melhor de si e deixa fazer
a curva do rio. Se tiver que retornar, virá”.
Noutra madrugada virando trabalho em cima da hora, foi
ajudá-lo com não sei o que, disseram que a sala em que ele apagava incêndio
estava com serviço saindo pelo ladrão, fez de conta que não tinha o que fazer e
passou por lá como quem não quer nada. Fazendo o trabalho mais operacional do
mundo, ouviu dele:
- Seu cheiro é bom.
Ficou sem graça e feliz:
- É uma mistura de creme, desodorante e perfume, pois como
diz a revista TPM: queremos nos livrar dos nossos cheiros naturais.
Mas era tanto o que por em dia e tanto cansaço para se
livrarem que não passou disso.
Meses depois foi preciso viajarem todos juntos a negócios.
Apesar de toda dor de cabeça dos primeiros dias e da maioria das horas,
arrumaram tempo para tomar um pouco de sol, “aos 45 do segundo tempo”. Vendo
que ela se contorcia para passar o protetor solar, ele veio se oferecer para
besuntar as costas dela, que brincou:
- Acho que esse não tem o perfume que tinha reparado aquele
dia.
- O gostoso é o seu cheiro mesmo, não tem perfume artificial
nele.
Ficou meio orgulhosa e sem saber como reagir. Tanto era
verdade o que ele falou que antes de apertar o creme e deslizar na pele dela,
ficou cheirando, a ponta do nariz dele brincando com os pelos claros dela, que
se arrepiava e pedia que o momento não acabasse, nem chegasse mais ninguém do
trabalho para cortar o clima.
Pensou cedo demais e os principais fomentadores da rádio pião
quase que "brotam do chão". Os dois vão esfriar os ânimos na água. E se olham
como quem tem a dizer, mas acredita que as palavras para a ocasião ainda não
constam em nenhum vocabulário.
Numa lavagem de pratos ele encontrou com ela esquentando
comida na pequena copa do trabalho e foi pego pelo estômago:
- Sua comida também cheira bem.
-Quer que vá cozinhar para vocês? – desta vez foi rápida no
gatilho.
-Pode ser. Mas não somos naturebas como você.
- Olha que converto qualquer um com minhas criações heim?
- Pago para ver.
- E qual a moeda desta aposta?
-Vamos ter que reinventar a roda amorosa.
- Só se a transformarmos em triângulo.
- Quando?
- Sábado à noite.
- Às oito.
- Na casa de vocês ou na minha?
- Na nossa. Preferimos terreno conhecido onde sabemos como
pisar.
- Sem problemas. Me manda o endereço.
- Passo sim.
Desta vez, milagrosamente não apareceram os urubus de
plantão da agência.
A aposta aconteceu ainda no início da semana, que demorou a
passar. Mas eles foram fazendo com que ela corresse mais rápido alongando
quando as mãos se encontravam manipulando brinde, fazendo questão de se
encostar para cruzar a agência e trombar propositadamente com o que estava
sentado só para pedir desculpas e deslizar por um ombro exposto. Alguma coisa
impalpável fervia a olhos nus, mas a rádio pião ainda não tinha evidências e
até prova em contrário, ele era homo convicto.
Na grande noite, ele nutria expectativas maiores que o
companheiro, ainda não iniciado no universo feminino e a princípio nem
interessado em adentrar nesta saara. Mas ela foi chegando com seus sabores
leves, super temperados e inundando a casa de aromas, que foram provocando
roncos nos estômagos ansiosos deles, que raramente saíam do lugar comum
carnívoro. Algumas viagens pelas cores de ervas exóticas depois, se deliciaram
os três com uma versão vegana da bacalhoada e como os dois comeram gemendo, ao
término da refeição ela ainda foi para a cozinha, no que parecia uma iniciativa
de lavar a louça, quando justamente o que não tinha interesse inicial na aposta
foi impedi-la.
Entre esbarros, sem gracice e olhares furtivos, ficaram meio
sem jeito ali na cozinha americana. O que já a tocava propositadamente no
serviço chegou quando o silêncio inundava o ambiente e levantou o cabelo dela
num rabo de cavalo. Quem nunca tinha pensado em interagir com uma mulher de
repente se viu ligeiramente atordoado com aqueles fios que teimavam em fugir do
elástico e - quem diria - com o suor do trabalho braçal de cozinhar escorrendo na nuca. De repente um cheirou
– quem diria – a curva entre a axila e o braço e o aroma dela se misturava com
o resto de desodorante e um pouco de suor e era estupidamente excitante. O
outro se perdeu naquela estreita faixa entre o nariz e os lábios e ali se
demoraram uma vida.
Ela se aturdia entre o frio na barriga e aquele torpor de
começo de paixão, mas ainda teve força para fazer um carinho no final da orelha
do colega de trabalho, onde começava o pescoço e brincar com a parte interna do
braço do outro. E foi ali no chão de azulejos mesmo que foram fazendo o corpo
de um de mapa e o do outro de universo desconhecido. Brincaram de cabra cega um
no outro. Era uma viagem nova para os três e empreendê-la juntos tinha um sabor
nostálgico de adolescência, que a vida era uma eterna primeira vez.
Os dedos e lábios correram lugares até então incomuns para
os três: atrás do joelho, parte interna do cotovelo, lateral da barriga,
comecinho do pé, canto da batata da perna... Vinham de relacionamentos muito focados no óbvio e a urgência na descoberta de outras fontes de arrepios e suspiros era
tardiamente represada. Se esquadrinharam como quem descobre uma primeira vez
tardia: o ménage a trois em que não aconteciam sobra de parte alguma. Os
encaixes eram precisos e os gemidos provavam que o ímpar podia ser numa fração
de tempo inacreditavelmente suficiente.
A exaustão foi tanta que no dia seguinte todos se atrasaram para seus plantões e a chegada dos dois juntos, de cabelos molhados e rindo até das broncas
incendiou a vocação geradora de boatos interna. Agora mais que nunca
criavam formas de roçar a ponta das mãos, passar a perna nas costas um do
outro, o braço no cabelo, a barriga na cabeça, no escritório, na cozinha, no
corredor do banheiro. Riam como se tivessem voltado aos treze anos e contavam
os minutos para reencontrem a terceira ponta daquele polígono imprevisível e
incendiário.
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Às Escuras
A foto saiu da bandeja e se revelou inteira, como quem se
despe para o homem que ama. O professor se orgulhava da aluna ter aprendido
tanto em tão pouco tempo:
- Quando a gente foca um ponto e deixa o resto desfocado
está começando a pegar um caminho de escolher o próprio estilo. – incentivava ele.
- Sou apaixonada por preto e branco. – se animava a aluna.
- Dá para desenhar mais fotos de alguns perfis.
- Tem outro tom que é lindo...
Ela vai passando outra folha fotográfica na bandeja e a
demora do produto químico reagir cria uma expectativa. Naquele breu, pouco se
vêem, são os olhos que conversam entrelinhas.
Durante a fixação e revelação, ela leva um susto:
- Putz! Mergulhei o relógio da 25 de Março nos químicos...
Será que sobrevive?
- Tem uns Ching Ling que são até resistentes. – torce o
professor, pendurando imagens que imobilizam o olhar no varal das melhores
criações.
- Esse tom dá para explorar muita coisa bacana! – quando ela
tira a imagem da última bandeja, ela faz voltar no tempo.
- Sépia é um convite ao passado! – se anima ele.
Ela mesma pendura sua foto produzida no varal dos alunos.
- Você diz que a fotografia é a morte...- não entende ela.
- Ela fixa o que nunca mais conseguimos retomar. – explica ele.
- A graça é essa. – ela acredita.
O laboratório tinha tamanho suficiente para criar um clima
meio claustrofóbico. Não em quem de repente se vê com outros olhos. Quando a
blusa dela escorregou pelo ombro e ele foi surpreendido por umas sardas meio
escondidas, pararam de esmiuçar a paixão que tinham em comum. E naquele breu
convidativo, deixaram que os olhos criassem outras químicas além das que
estavam nas bandejas, com cheiro mais convidativo. Ele suou frio, o que fez o
óculos dele escorregar e pela primeira vez ela viu que embora o professor tivesse
olhos puxados de índio, eram claros. As pupilas se conversavam e as palavras
foram supérfluas. O relógio dela roçou a parte interna do braço dele, que teve
coragem de permitir que a conversa invadisse aquele momento:
- Ele continua funcionando!
- A hora da aula estourou
As costas dela quase que se encaixaram na única bancada de
máquinas, que naquele momento estavam emprestadas e foi natural se tornar
convidativa. Ela roçou a perna que escapava da mini saia nos pelos dele que
fugiam da bermuda. Seu toque baixou o resto de blusa que ainda teimava em
esconder o resto das sardas e foi encontrando o caminho que a deixava meio sem
ar. As mãos dela se esconderam entre a as costas e a blusa dele. Descobriram um
encaixe em que quase acendiam o laboratório, ainda na penumbra. Parte da roupa
que os separava foi atirada quase longe, que o espaço não era para tanto. Se
amaram com uma ânsia que precisava ser sorvida em grandes goles, duma sede
adiada há tempo demais. Quando a mão dele se esticou, alcançou a única máquina
ainda não retirada do laboratório da faculdade e ela ousou acender a luz.
Seus cliques a buscaram como quem tateia o outro com a
lente. Ela se abria como quem acorda e se espreguiça com todo o tempo do mundo.
O amor é um jogo de pique e pega. Ela ensaiava uma timidez que ele não
conhecia, mas acabava encontrando um espaço para registrar a risada que quebra
a sem gracice. Ele não conhecia os caminhos que levavam à essência que o
obturador quer registrar, mas as sardas eram uma pista que ele se encantava em
explorar.
A máquina que uniu este vai e vem era digital. A maioria que
fazia o curso lá gostava de brincar com as possibilidades esquecidas das
câmeras tradicionais. Conseguiram ver as fotos na urgência de uma paixão que se
recusa a esperar. Ela riu:
- Uma prima diz que queria ficar com um fotógrafo só para
ele fazer poesia para sempre com a lente.
- Se ela viesse aqui no mesmo horário e montássemos
praticamente o mesmo cenário, mesmo que ela se parecesse com você, as imagens
nunca sairiam nem de perto parecidas.
Ele arrumou o óculos.
- Entendeu “garotinha ruiva” porque a fotografia é a morte?
Cabra cega
- Fiquem de costas um para o outro! – pedia o diretor.
Como criar entre dois estranhos o clima de personagens que
se amavam, mas não podiam concretizar aquela paixão? Era o caminho que tateavam
juntos.
Ela não o achava nem atraente, nem asqueroso. Estava numa
zona tão neutra que nem sabia por onde iniciar este trabalho cênico, então se
entregou às orientações da direção. É que quando tocaram suas costas, um lastro
de memória olfativa disparou as mais antigas memórias – dizem que aquelas que
vêm pelo nariz são as mais rápidas. Mas nem era cheiro de perfume, era dele
mesmo, que depois daquele aquecimento demorado não tinha banho que resistia.
Ele achou que ela lembrava uma prima com quem teve problemas
a vida inteira e também não tinha ideia de por onde puxar o sentimento que a
peça cobrava. Sua única escapatória foi confiar na direção, pois por conta do
que já tinha estudado e experienciado não estava conseguindo. Encostando às
costas dela, sentiu que os suores teimavam em se misturar e aquilo disparou sensações
que ele não lembrava ter sentido. Meio incômodas e ao mesmo tempo
irresistíveis.
Parecia que passaram horas assim. E foram poucos minutos. Um
enfaixou os olhos do outro, acendeu incenso, deu comida na boca e também se
deixou tapar os olhos. Se tatearam. Por um tempo infindável. Teve gente no
teatro que não tinha a ver com o processo e foi comer, tomar café, ao banheiro.
Eles não. Perderam a pressa. O diretor colocou músicas que eram um golpe baixo.
E o tempo parou. Onde tinha ido parar a cisma que um tinha com o outro? Sabe
Deus.
Um alcançou o incenso. E brincou de quase queimar o outro,
que encontrou a comida, ensaiou dar na boca e enrolou para realmente por na
língua. Encontraram um ritmo e dançaram como se os outros não existissem.
Criaram um novo movimento, sem receio do julgamento alheio, se aquilo tinha
sentido ou não. Deitaram no chão. As mãos se encontraram. Deram choque.
Fugiram. Se reencontraram. Quase saíram faíscas. Se agacharam. Se trombaram.
Riram como crianças. Desenharam um no outro formas que ficaram esquecidas na
infância, como quem reaprende que todo mundo desenha, só é reprimido. E o dedo
pode repentinamente virar um pincel.
Brincaram, como bailarinos, de ocupar plano médio sem se
ver. Mas às vezes se cruzavam. E deixavam atiçar a imaginação de que estavam
iluminando o espaço, mesmo com luzes apagadas. Gostavam de acreditar que suas
energias tinham essa capacidade. E cansaram. E se apoiaram. E caíram deitados,
loucos para experimentar os textos em ensaios. As falas saíram urgentes,
viscerais, orgânicas. Não viram o tempo passar. Não lembraram de tirar as
faixas dos olhos. Para o diretor, foi fácil deixar o processo fluir. Tinham
encontrado o caminho, depois de tanto estranhamento
E meses depois levaram aquela entrega para o palco. E
sentiam o inesperado desejo brotando e ouviam vagamente o diretor pedindo que
não baixassem a guarda, que aquela vontade tornava a ficção mais real. E mais e
mais gente vinha vê-los. No início, claro, parentes, amigos, vizinhos, colegas,
familiares. Depois, os olhares que “de vez em nunca” distinguiam na platéia eram
estranhos. E aí sim, davam toda entrega do mundo, como quem não se constrange
de ser reconhecido embaixo de tanta maquiagem, luz, figurino, acessório de
cena.
E contavam os dias para a temporada acabar. Como a maioria
dos atores que conheciam, trocavam um na frente do outro. Mas ao contrário dos
colegas de profissão que encenavam histórias que mexiam menos com o que não
conseguiam nomear, mas sentiam brotar dos poros, dos cabelos, dos olhos, da
boca, do nariz... Se olhavam diferente entre uma mudança de figurino e outra.
Juravam que de luzes apagadas fariam reacender toda a coxia. Lamentavam que
houvesse pouca troca de figurino.
Ao contrário de outros trabalhos, contaram as apresentações
para a temporada acabar. Se olhavam meio de esquiva quando se trocavam no
finzinho de cada noite. Pela primeira vez, torciam para não prorrogar. Adoravam
que o teatro fosse pequeno, nem evitavam se roçar nas entradas e saídas das
cenas. Riam como crianças encantadas no jardim da infância quando os olhares se
cruzavam. Mas com a memória ao jogo cênico que mais funcionou, adoravam brincar
de cabra cega antes de se apresentar.
Na última noite se deram como nunca aos
personagens. Parecia que nem tinha platéia. Estavam mais à vontade que em suas
próprias casas. Não ouviam mais a música. A luz inacreditavelmente não dava calor.
E se atiçavam com o que os sentidos permitiam, já que ainda como os
personagens, não podiam se encontrar. Não ouviram o que o diretor dizia. E na
última fala se enfiaram no primeiro carro emprestado e correram para o lugar
mais ermo que conheciam e se beberam. É que o gosto era diferente do sonhado. O
que a gente imagina é melhor do que quando acontece. E se afastaram, ficando
com aquele gosto meio amargo na boca.
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