Sair de um trabalho apaixonante acarreta uma dor de amor
similar a dos finais de relacionamento. Todas as lições budistas sobre desapego
são esquecidas, como quando qualquer paixão nubla a visão da mais sensata das
pessoas. Poder escrever mais livre, exercitar outras inteligências, tira os pés do chão
de profissionais menos desavisados. Mergulha-se em queda livre, como quem se
doa a um trabalho pela primeira vez. Mesmo na septuagésima experiência. O expediente é esticado sem lembrar de
casa para arrumar, parentes para ver e projetos pessoais pulsando atenção personalizada. Contorna-se
problemas de estrutura com recursos próprios, esquecendo que adicionais por
isso não foram previamente combinados.
O texto é escrito e editado à exaustão, em busca das
melhores formas de se contar aquela história. Ralar além do combinado baixa a guarda, deixa escapar confissões, sem recordar que talvez o pé atrás fosse a melhor entrada em terreno
novo. Os paus técnicos geram medo do prejuízo que a dedicação pode sofrer, sem
saber que se a má vontade das operadoras campeãs de reclamações no Procon será
levado em conta. Os detalhes do trabalho são compartilhados com amigos com
empolgação quase infantil – que todo amor à primeira vista sofre de desvario adolescente, como quem publica um texto pela primeira vez e toda a experiência da
última década e meia serve só para a produção, não contribui com lembranças das
instabilidades do mercado.
As informações apuradas contribuem para o abençoado
aprendizado indireto que só esta profissão proporciona. Lembra da tia que
brinca que ela conversa de “colostro a física quântica”, de tanto que já
entrevistou, redigiu, revisou, pesquisou, editou. Ama ouvir quem entende muito
ou gosta demais de qualquer assunto, pois esses é que dão as melhores aulas, que
rendem os textos mais encorpados, que ela também gosta de ensinar, ainda que
seja com a palavra escrita. Quem tirava suas dúvidas era até interessante.
Lembra da vizinha que sempre fica com alguém no trabalho, “que é uma vingança
contra o capitalismo”. Não, ainda não é ativista tão radical assim.
Até passar vontade no bairro em que quase tudo é
“incomprável” tinha seu lado divertido: erguia os óculos e fazia uns passeios
com astigmatismo pelo local. Não captava os detalhes, ficava só com
umas vagas lembranças de cores, formatos distorcidos, nada despertava tão
fortemente impulsos de compra em quem está com planos maiores a longo prazo e
precisa segurar o bolso para realizá-los. Mas admitia que era uma perua
enrustida: tinha bom gosto, os rendimentos só não acompanhavam. Como se tudo
isso não bastasse, se divertia no expediente, descobria coisas novas e pode - mesmo que mais rápido que gostaria - trabalhar com a máquina que todos qualificavam como a top de linha.
Cortar o apego que ela criou a esse lugar descolado em que
inclusive trabalhou passando mal tem todos os tons de um drama amoroso:
lágrimas, ligações para os amigos, tentativas de entender o episódio na
terapeuta, saudades dos detalhes que envolveram a relação, necessidade de
purgar a dor sozinha e uso da raiva em projeto pessoal para sobreviver
emocionalmente. Ela inclusive esquece que já passou por isso, que as emoções
aflitivas são impermanentes, que enquanto estivermos no capitalismo será assim,
que o mercado é injusto e não tem vaga para todo mundo. Passa o dia seguinte de
pijama escrevendo até as oito da noite. O pai não entende que quem escreve não
tem um dom, tem uma sina e escreve para não morrer, pois é uma avalanche
interna de palavras, sensações, sonhos, conexões, lembranças... Amores.
Acaba de parir mais um: projeto pessoal antigo, empoeirado
na prateleira de sonhos, estimulada pela terapeuta e pelo que ouviu no término
da parceria que rendeu a dor de amor corporativa. O amigo tem razão: mesmo se ele
não ganhar dinheiro com isso, continuará desenhando. Mesmo que ela não seja
remunerada, as palavras teimam em sair, como cavalos selvagens precisando
ganhar o mundo. Nada impede de dar continuidade aos textos mais focados em sua
paixão que rendeu até a segunda faculdade, como idealizou lá longe, na pré
infância de seus sonhos inconfessos.
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