- Fiquem de costas um para o outro! – pedia o diretor.
Como criar entre dois estranhos o clima de personagens que
se amavam, mas não podiam concretizar aquela paixão? Era o caminho que tateavam
juntos.
Ela não o achava nem atraente, nem asqueroso. Estava numa
zona tão neutra que nem sabia por onde iniciar este trabalho cênico, então se
entregou às orientações da direção. É que quando tocaram suas costas, um lastro
de memória olfativa disparou as mais antigas memórias – dizem que aquelas que
vêm pelo nariz são as mais rápidas. Mas nem era cheiro de perfume, era dele
mesmo, que depois daquele aquecimento demorado não tinha banho que resistia.
Ele achou que ela lembrava uma prima com quem teve problemas
a vida inteira e também não tinha ideia de por onde puxar o sentimento que a
peça cobrava. Sua única escapatória foi confiar na direção, pois por conta do
que já tinha estudado e experienciado não estava conseguindo. Encostando às
costas dela, sentiu que os suores teimavam em se misturar e aquilo disparou sensações
que ele não lembrava ter sentido. Meio incômodas e ao mesmo tempo
irresistíveis.
Parecia que passaram horas assim. E foram poucos minutos. Um
enfaixou os olhos do outro, acendeu incenso, deu comida na boca e também se
deixou tapar os olhos. Se tatearam. Por um tempo infindável. Teve gente no
teatro que não tinha a ver com o processo e foi comer, tomar café, ao banheiro.
Eles não. Perderam a pressa. O diretor colocou músicas que eram um golpe baixo.
E o tempo parou. Onde tinha ido parar a cisma que um tinha com o outro? Sabe
Deus.
Um alcançou o incenso. E brincou de quase queimar o outro,
que encontrou a comida, ensaiou dar na boca e enrolou para realmente por na
língua. Encontraram um ritmo e dançaram como se os outros não existissem.
Criaram um novo movimento, sem receio do julgamento alheio, se aquilo tinha
sentido ou não. Deitaram no chão. As mãos se encontraram. Deram choque.
Fugiram. Se reencontraram. Quase saíram faíscas. Se agacharam. Se trombaram.
Riram como crianças. Desenharam um no outro formas que ficaram esquecidas na
infância, como quem reaprende que todo mundo desenha, só é reprimido. E o dedo
pode repentinamente virar um pincel.
Brincaram, como bailarinos, de ocupar plano médio sem se
ver. Mas às vezes se cruzavam. E deixavam atiçar a imaginação de que estavam
iluminando o espaço, mesmo com luzes apagadas. Gostavam de acreditar que suas
energias tinham essa capacidade. E cansaram. E se apoiaram. E caíram deitados,
loucos para experimentar os textos em ensaios. As falas saíram urgentes,
viscerais, orgânicas. Não viram o tempo passar. Não lembraram de tirar as
faixas dos olhos. Para o diretor, foi fácil deixar o processo fluir. Tinham
encontrado o caminho, depois de tanto estranhamento
E meses depois levaram aquela entrega para o palco. E
sentiam o inesperado desejo brotando e ouviam vagamente o diretor pedindo que
não baixassem a guarda, que aquela vontade tornava a ficção mais real. E mais e
mais gente vinha vê-los. No início, claro, parentes, amigos, vizinhos, colegas,
familiares. Depois, os olhares que “de vez em nunca” distinguiam na platéia eram
estranhos. E aí sim, davam toda entrega do mundo, como quem não se constrange
de ser reconhecido embaixo de tanta maquiagem, luz, figurino, acessório de
cena.
E contavam os dias para a temporada acabar. Como a maioria
dos atores que conheciam, trocavam um na frente do outro. Mas ao contrário dos
colegas de profissão que encenavam histórias que mexiam menos com o que não
conseguiam nomear, mas sentiam brotar dos poros, dos cabelos, dos olhos, da
boca, do nariz... Se olhavam diferente entre uma mudança de figurino e outra.
Juravam que de luzes apagadas fariam reacender toda a coxia. Lamentavam que
houvesse pouca troca de figurino.
Ao contrário de outros trabalhos, contaram as apresentações
para a temporada acabar. Se olhavam meio de esquiva quando se trocavam no
finzinho de cada noite. Pela primeira vez, torciam para não prorrogar. Adoravam
que o teatro fosse pequeno, nem evitavam se roçar nas entradas e saídas das
cenas. Riam como crianças encantadas no jardim da infância quando os olhares se
cruzavam. Mas com a memória ao jogo cênico que mais funcionou, adoravam brincar
de cabra cega antes de se apresentar.
Na última noite se deram como nunca aos
personagens. Parecia que nem tinha platéia. Estavam mais à vontade que em suas
próprias casas. Não ouviam mais a música. A luz inacreditavelmente não dava calor.
E se atiçavam com o que os sentidos permitiam, já que ainda como os
personagens, não podiam se encontrar. Não ouviram o que o diretor dizia. E na
última fala se enfiaram no primeiro carro emprestado e correram para o lugar
mais ermo que conheciam e se beberam. É que o gosto era diferente do sonhado. O
que a gente imagina é melhor do que quando acontece. E se afastaram, ficando
com aquele gosto meio amargo na boca.
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