quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Cabra cega


- Fiquem de costas um para o outro! – pedia o diretor.
Como criar entre dois estranhos o clima de personagens que se amavam, mas não podiam concretizar aquela paixão? Era o caminho que tateavam juntos.
Ela não o achava nem atraente, nem asqueroso. Estava numa zona tão neutra que nem sabia por onde iniciar este trabalho cênico, então se entregou às orientações da direção. É que quando tocaram suas costas, um lastro de memória olfativa disparou as mais antigas memórias – dizem que aquelas que vêm pelo nariz são as mais rápidas. Mas nem era cheiro de perfume, era dele mesmo, que depois daquele aquecimento demorado não tinha banho que resistia.
Ele achou que ela lembrava uma prima com quem teve problemas a vida inteira e também não tinha ideia de por onde puxar o sentimento que a peça cobrava. Sua única escapatória foi confiar na direção, pois por conta do que já tinha estudado e experienciado não estava conseguindo. Encostando às costas dela, sentiu que os suores teimavam em se misturar e aquilo disparou sensações que ele não lembrava ter sentido. Meio incômodas e ao mesmo tempo irresistíveis.
Parecia que passaram horas assim. E foram poucos minutos. Um enfaixou os olhos do outro, acendeu incenso, deu comida na boca e também se deixou tapar os olhos. Se tatearam. Por um tempo infindável. Teve gente no teatro que não tinha a ver com o processo e foi comer, tomar café, ao banheiro. Eles não. Perderam a pressa. O diretor colocou músicas que eram um golpe baixo. E o tempo parou. Onde tinha ido parar a cisma que um tinha com o outro? Sabe Deus.
Um alcançou o incenso. E brincou de quase queimar o outro, que encontrou a comida, ensaiou dar na boca e enrolou para realmente por na língua. Encontraram um ritmo e dançaram como se os outros não existissem. Criaram um novo movimento, sem receio do julgamento alheio, se aquilo tinha sentido ou não. Deitaram no chão. As mãos se encontraram. Deram choque. Fugiram. Se reencontraram. Quase saíram faíscas. Se agacharam. Se trombaram. Riram como crianças. Desenharam um no outro formas que ficaram esquecidas na infância, como quem reaprende que todo mundo desenha, só é reprimido. E o dedo pode repentinamente virar um pincel.
Brincaram, como bailarinos, de ocupar plano médio sem se ver. Mas às vezes se cruzavam. E deixavam atiçar a imaginação de que estavam iluminando o espaço, mesmo com luzes apagadas. Gostavam de acreditar que suas energias tinham essa capacidade. E cansaram. E se apoiaram. E caíram deitados, loucos para experimentar os textos em ensaios. As falas saíram urgentes, viscerais, orgânicas. Não viram o tempo passar. Não lembraram de tirar as faixas dos olhos. Para o diretor, foi fácil deixar o processo fluir. Tinham encontrado o caminho, depois de tanto estranhamento
E meses depois levaram aquela entrega para o palco. E sentiam o inesperado desejo brotando e ouviam vagamente o diretor pedindo que não baixassem a guarda, que aquela vontade tornava a ficção mais real. E mais e mais gente vinha vê-los. No início, claro, parentes, amigos, vizinhos, colegas, familiares. Depois, os olhares que “de vez em nunca” distinguiam na platéia eram estranhos. E aí sim, davam toda entrega do mundo, como quem não se constrange de ser reconhecido embaixo de tanta maquiagem, luz, figurino, acessório de cena.
E contavam os dias para a temporada acabar. Como a maioria dos atores que conheciam, trocavam um na frente do outro. Mas ao contrário dos colegas de profissão que encenavam histórias que mexiam menos com o que não conseguiam nomear, mas sentiam brotar dos poros, dos cabelos, dos olhos, da boca, do nariz... Se olhavam diferente entre uma mudança de figurino e outra. Juravam que de luzes apagadas fariam reacender toda a coxia. Lamentavam que houvesse pouca troca de figurino.
Ao contrário de outros trabalhos, contaram as apresentações para a temporada acabar. Se olhavam meio de esquiva quando se trocavam no finzinho de cada noite. Pela primeira vez, torciam para não prorrogar. Adoravam que o teatro fosse pequeno, nem evitavam se roçar nas entradas e saídas das cenas. Riam como crianças encantadas no jardim da infância quando os olhares se cruzavam. Mas com a memória ao jogo cênico que mais funcionou, adoravam brincar de cabra cega antes de se apresentar.
Na última noite se deram como nunca aos personagens. Parecia que nem tinha platéia. Estavam mais à vontade que em suas próprias casas. Não ouviam mais a música. A luz inacreditavelmente não dava calor. E se atiçavam com o que os sentidos permitiam, já que ainda como os personagens, não podiam se encontrar. Não ouviram o que o diretor dizia. E na última fala se enfiaram no primeiro carro emprestado e correram para o lugar mais ermo que conheciam e se beberam. É que o gosto era diferente do sonhado. O que a gente imagina é melhor do que quando acontece. E se afastaram, ficando com aquele gosto meio amargo na boca.

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