Quando se conheceram ficou meio com aquela sensação juvenil
de vertigem convulsiva. Conversaram, gostou do papo, mas o que mais justificava
a fixação inicial era o brilho dos olhos. De resto tinha aquela morenice que
sempre a atraiu. E os cabelos grisalhos, bem estes eram uma novidade em seu
repertório. Gozado que o que ele contava ia e vinha, com uma trilha sonora,
quase como nos filmes “água com açúcar” dos quais se dizia tão avessa. A
risada, o colega tinha razão, era a mais bela curva do ser humano. Mas enfim...
Num ambiente tão pouco propício... O sanatório daquela agência, que parecia
virada do avesso. De repente podia considerar a filosofia de vida da vizinha,
de a cada serviço conquistar mais um, pois era uma “vingança legítima contra o
capitalismo”. Na primeira virada de madrugada em que ele se safou e juraram por
rebeldia de pião recalcado que deixariam as mais pesadas tarefas para o retorno
dele, desejando “de lambuja“ uma hérnia de disco, deixou escapar:
-Eu me pré disponho a fazer massagem nele.
O que já seria suficiente para movimentar a “rádio pião”
interna. Mas um amargurado de plantão já cortou “seu barato”:
- Ele namora. Um cara.
E quem disse que isso era empecilho? Ela sempre fantasiou
perverter um gay. Como ainda não tinha acontecido, não sabia por onde começar.
Mas já estava naquela fase em que seguia a música “deixa estar que o que for
para ser vigora”, sinal de que sua ansiedade patológica estava a caminho da
cura. Riu sozinha quando percebeu que embora ainda roesse as unhas, já estava
praticando o que recomendava o colega “dá o melhor de si e deixa fazer
a curva do rio. Se tiver que retornar, virá”.
Noutra madrugada virando trabalho em cima da hora, foi
ajudá-lo com não sei o que, disseram que a sala em que ele apagava incêndio
estava com serviço saindo pelo ladrão, fez de conta que não tinha o que fazer e
passou por lá como quem não quer nada. Fazendo o trabalho mais operacional do
mundo, ouviu dele:
- Seu cheiro é bom.
Ficou sem graça e feliz:
- É uma mistura de creme, desodorante e perfume, pois como
diz a revista TPM: queremos nos livrar dos nossos cheiros naturais.
Mas era tanto o que por em dia e tanto cansaço para se
livrarem que não passou disso.
Meses depois foi preciso viajarem todos juntos a negócios.
Apesar de toda dor de cabeça dos primeiros dias e da maioria das horas,
arrumaram tempo para tomar um pouco de sol, “aos 45 do segundo tempo”. Vendo
que ela se contorcia para passar o protetor solar, ele veio se oferecer para
besuntar as costas dela, que brincou:
- Acho que esse não tem o perfume que tinha reparado aquele
dia.
- O gostoso é o seu cheiro mesmo, não tem perfume artificial
nele.
Ficou meio orgulhosa e sem saber como reagir. Tanto era
verdade o que ele falou que antes de apertar o creme e deslizar na pele dela,
ficou cheirando, a ponta do nariz dele brincando com os pelos claros dela, que
se arrepiava e pedia que o momento não acabasse, nem chegasse mais ninguém do
trabalho para cortar o clima.
Pensou cedo demais e os principais fomentadores da rádio pião
quase que "brotam do chão". Os dois vão esfriar os ânimos na água. E se olham
como quem tem a dizer, mas acredita que as palavras para a ocasião ainda não
constam em nenhum vocabulário.
Numa lavagem de pratos ele encontrou com ela esquentando
comida na pequena copa do trabalho e foi pego pelo estômago:
- Sua comida também cheira bem.
-Quer que vá cozinhar para vocês? – desta vez foi rápida no
gatilho.
-Pode ser. Mas não somos naturebas como você.
- Olha que converto qualquer um com minhas criações heim?
- Pago para ver.
- E qual a moeda desta aposta?
-Vamos ter que reinventar a roda amorosa.
- Só se a transformarmos em triângulo.
- Quando?
- Sábado à noite.
- Às oito.
- Na casa de vocês ou na minha?
- Na nossa. Preferimos terreno conhecido onde sabemos como
pisar.
- Sem problemas. Me manda o endereço.
- Passo sim.
Desta vez, milagrosamente não apareceram os urubus de
plantão da agência.
A aposta aconteceu ainda no início da semana, que demorou a
passar. Mas eles foram fazendo com que ela corresse mais rápido alongando
quando as mãos se encontravam manipulando brinde, fazendo questão de se
encostar para cruzar a agência e trombar propositadamente com o que estava
sentado só para pedir desculpas e deslizar por um ombro exposto. Alguma coisa
impalpável fervia a olhos nus, mas a rádio pião ainda não tinha evidências e
até prova em contrário, ele era homo convicto.
Na grande noite, ele nutria expectativas maiores que o
companheiro, ainda não iniciado no universo feminino e a princípio nem
interessado em adentrar nesta saara. Mas ela foi chegando com seus sabores
leves, super temperados e inundando a casa de aromas, que foram provocando
roncos nos estômagos ansiosos deles, que raramente saíam do lugar comum
carnívoro. Algumas viagens pelas cores de ervas exóticas depois, se deliciaram
os três com uma versão vegana da bacalhoada e como os dois comeram gemendo, ao
término da refeição ela ainda foi para a cozinha, no que parecia uma iniciativa
de lavar a louça, quando justamente o que não tinha interesse inicial na aposta
foi impedi-la.
Entre esbarros, sem gracice e olhares furtivos, ficaram meio
sem jeito ali na cozinha americana. O que já a tocava propositadamente no
serviço chegou quando o silêncio inundava o ambiente e levantou o cabelo dela
num rabo de cavalo. Quem nunca tinha pensado em interagir com uma mulher de
repente se viu ligeiramente atordoado com aqueles fios que teimavam em fugir do
elástico e - quem diria - com o suor do trabalho braçal de cozinhar escorrendo na nuca. De repente um cheirou
– quem diria – a curva entre a axila e o braço e o aroma dela se misturava com
o resto de desodorante e um pouco de suor e era estupidamente excitante. O
outro se perdeu naquela estreita faixa entre o nariz e os lábios e ali se
demoraram uma vida.
Ela se aturdia entre o frio na barriga e aquele torpor de
começo de paixão, mas ainda teve força para fazer um carinho no final da orelha
do colega de trabalho, onde começava o pescoço e brincar com a parte interna do
braço do outro. E foi ali no chão de azulejos mesmo que foram fazendo o corpo
de um de mapa e o do outro de universo desconhecido. Brincaram de cabra cega um
no outro. Era uma viagem nova para os três e empreendê-la juntos tinha um sabor
nostálgico de adolescência, que a vida era uma eterna primeira vez.
Os dedos e lábios correram lugares até então incomuns para
os três: atrás do joelho, parte interna do cotovelo, lateral da barriga,
comecinho do pé, canto da batata da perna... Vinham de relacionamentos muito focados no óbvio e a urgência na descoberta de outras fontes de arrepios e suspiros era
tardiamente represada. Se esquadrinharam como quem descobre uma primeira vez
tardia: o ménage a trois em que não aconteciam sobra de parte alguma. Os
encaixes eram precisos e os gemidos provavam que o ímpar podia ser numa fração
de tempo inacreditavelmente suficiente.
A exaustão foi tanta que no dia seguinte todos se atrasaram para seus plantões e a chegada dos dois juntos, de cabelos molhados e rindo até das broncas
incendiou a vocação geradora de boatos interna. Agora mais que nunca
criavam formas de roçar a ponta das mãos, passar a perna nas costas um do
outro, o braço no cabelo, a barriga na cabeça, no escritório, na cozinha, no
corredor do banheiro. Riam como se tivessem voltado aos treze anos e contavam
os minutos para reencontrem a terceira ponta daquele polígono imprevisível e
incendiário.
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