- Já sei porque gosto tanto desse perfume.
- Descobriu agora?
- Vendo essa saída em comboio do cursinho. Acho que o cheiro me lembra minha "aborrescência".
- Ela não pode ter sido tão boa assim. Nem esse perfume pode ser tão antigo.
- Não sou tão retrô quanto você pensa. Dizem que nossa memória olfativa é a mais rápida.
- Nessa fase a gente espera o resultado do vestibular. Os pais liberarem alguma saída ou viagem que nunca mais se repetirá. E o homem da sua vida da semana passada ligar.
- E nessa você, que pensou que a grande prova da sua vida fosse entrar na faculdade, espera o resultado do teste de trabalho, que por sinal tem muito mais gente por vaga. Espera ter grana para aquele filme, peça, sonha em estudar fora e pegar avião sem ser a trabalho. As viagens dos seus sonhos já te esperam há uns três anos, já perdeu as contas ou minimizou o tempo sem trégua do batente, pois a última vez que pôs o pé em aeroporto foi a negócios. Você também espera outro homem ligar - só acha que é "o da sua vida desse momento".
- Eu escrevo para decantar.
- Eu troco de papéis no teatro. Mas eu podia absolutamente tudo na sua época. Era do tamanho dos meus sonhos. Ou seja, gigante.
- Você não sonha mais?
- Sim, mas não sei onde foi parar aquela que faria francês e conheceria a Cidade Luz só por causa do nome. Acho que tenho saudade dela.
- Mas nessa época tem amigas que te deixam na mão.
- E agora há promessas não cumpridas, mas parece que podíamos confiar nelas: com os furos, você não sabe que contas pagar.
- Será por isso que uns fumam demais?
- Hoje tem quem se drogue demais. Será que é para embotar o quanto estão "um pote até aqui de mágoa" com as promessas não cumpridas?
- Vai saber? Só sei que escrevo para não morrer.
- E se não esperássemos nada uns dos outros? O que viesse seria lucro.
- Podíamos fazer esse perfume que gosta com tanta água salgada derramada.
- Mas quando estive no seu lugar era mais romântica, sonhadora, idealista.
- Ser adolescente hoje já não é mais a mesma coisa.
- Agora o inverno é mais curto, mas o frio aumenta. Deve ser por causa da solidão da qual fugimos.
- Por isso que você tem que inventar esse reencontro?
- Como você não está aí? Não usei nada alucinógeno hoje.
- Você está levando os personagens para casa?
- Você é que está escrevendo demais. Mas eu não acabei aquela sua aula de yoga que estava te dando há...
- Já aprendi o essencial. Estável e confortável. Inclusive na guerra diária. É como na cãibra: temos que ter a coragem de descontrair para a dor partir.
Cena escrita a partir do poema de Mário Bortolotto "Do lado de cá da cidade faz muito frio/ talvez por isso os amigos bebam demais/ talvez por isso eu sempre cruzo as figuras no cinema/ do lado de cá da cidade existem acordos fraternos/ talvez por isso as pessoas estão sempre magoadas umas com as outras/ e choram tanto e bebem tanto/ eu já estive do outro lado da cidade/ só uma vez" na oficina "Da Poesia para a Cena", com Paula Autran Chagas, na Casa das Rosas, nov/dez/ 2012.
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