O batuque do Paulo Eduardo Silva, do Maria Sol, no Sesc São Caetano nesta sexta já colocava naturalmente o corpo numa ginga ancestral. Mas a didática de Kiusam de Oliveira foi libertando nossos músculos, que inconscientemente ainda estavam cativos. Desde tempos imemoriais? O desafio era sair da postura eurocêntrica, a que nos ensinaram como ideal e experimentar os braços quase como asas, depois as pernas meio que na diagonal e os pés, estes reafirmando que sim, esta terra é mais do que nossa e esta é a corporeidade na qual ficamos praticamente "em casa", num cansaço bom de sentir ao fim da noite.
Entre rodas e trombadas, fomos construindo coletivamente uma gestualidade do grupo, sem certos ou errados, mas com identidade afro brasileira e mais genuína que nunca. Nada de por reparo na dança alheia, cada uma é legítima à sua maneira e vem se libertando como pode, como consegue, como dá. Às vezes em suaves prestações. Às vezes, no susto, de sopetão.
Foi simbólico na semana do orgulho negro, em que desconfio que minha predileção tenha mais a ver com uma quase birra "aborrescente" de alfinetar o pai com minha suposta preferência no âmago do racismo inconfesso dele, que tenha de repente me sentido tratada quanto as escravas da senzala pelos senhores da casa grande (claro que guardadas as devidas proporções, por elas terem teoricamente menos escolha), quando subitamente o cheiro que me eriçava tenha começado a chegar mais neutro no meu nariz. Ouço a professora dizer que tinha "quequê", um certo charme no balanço do quadril, dias depois de sentir que ele rebolava sim na aula de dança tribal, apesar de uma preparadora vocal ter me mandado "descabaçar" para um papel de prostituta três anos atrás.
Encerramos brincando com esta, que é a música original de uma brincadeira ligeiramente diferente na infância e descobrindo que foi adulterada para tornar o corpo mais contido e o negro mais subjugado: "guerreiros Nagô jogavam caxangá. Gira, salta, deixa Canjerê ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" e o verso final era uma deixa e um acobertamento para a fuga.
P.S.: relevem os erros entendidos em afro assuntos de plantão, pois no Google não consta a grafia correta de nossa história, agora "contada de baixo".
sábado, 24 de novembro de 2012
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
Depois de virar a própria escultura, eis que me vi dança
Esta está sendo a melhor entressafra da última década e meia: caminhada, capoeira angola, escultura, dramaturgia, bolero... Sabe quando é uma curtição ficar com você mesma? Uma espécie de sabático express, pois tudo que é bom, dura esquema fast food. E pensava que a delícia da aula de cerâmica seria a modelagem: cara, sou uma Barbie à paisana - fico com aflição das unhas secando e sujando, mas não espalha que pega mal entre os bicho grilo da comunidade... Curti mesmo foi pintar uma releitura de máscara que eu fiz (só sendo de minha autoria mesmo para pendurar na parede) e encher de cores minha mandala bastarda (nos estranhamos hoje, mas ela estava batizada, não pude negar). Mergulhei tanto no processo com o engobe colorido, o pincel e as peças em estado de couro que a professora quase teve que me resgatar do meu autismo criativo. Quem diria, a hiper ativa concentrada! Só as artes plásticas salvam!
E depois, fui descobrir qual era a da dança tribal. Ela me redimiu da humilhação anos antes de achar que tinha que nascer com novos quadris na dança do ventre. O que uma dançarina com didática não faz? Lembrei da minha contação de histórias do sagrado feminino, como estes movimentos cairiam bem ali. O grupo fez uma apresentação chamada Faces no teatro do Arquidiocesano três anos atrás (cáspita de Google, nada de vídeo ou fotos), com breve locução e danças homenageando Salomé, Joana D´Arc, Anita Garibaldi... Imagine que desbunde! Lembrei que na minha apresentação de Miseráveis no Teatro Ruth Escobar sofri horrores com a preparadora vocal mandando rebolar com uma delicadeza hitleriana, para descobrir dois anos depois nas preliminares do Processo, com o diretor porta estandarte do pós dramático que TODA MULHER REBOLA e que graças à nossa bacia, provavelmente preparada para parir, não conseguíamos andar neutro como um exercício propunha. Ah, vá!
Rebolei horrores uma hora inteirinha! E aquele braço meio em mudra, meio preparando vôo, que às vezes lembrava alça de vaso e noutras movimento de dança indiana? Espero dar tchau ao músculo do adeus. Contrai a barriga! E com o vestido impróprio que estava para a prática, que esvoaçava para lá e para cá, nunca me senti tão feminina! Louca para retomar meu trabalho quase autoral de contação. Mulherices. E nem estou naqueles dias!
Falei para a profe que pode arrumar mais aula, ganhar uma grana e nos chamar para o open house da cobertura dela em pouco tempo marqueteirando o nome para dança feminista. Ou da femilindade. Oferecer em associações de mulheres. E viva o poder do sexo nada frágil!
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
A Ruivice é um Estado de Espírito
Independente de Deus ter dado ou o cabeleireiro ter misturado. A alma é proporcionalmente ruiva conforme o quanto dói ser você mesma. Batalhar pelo que gosta pagar suas contas. Não abrir mão dos sonhos mesmo quando já se sente semi nova e com Deus e o mundo de plantão para te cobrar seguir o script que a sociedade exige à risca: carreira, filhos, estabilidade.
Depende do quanto você se atira no abismo. Das paixões. Sejam elas corporativas ou de pele. Com o quanto se arrisca. Quebrar a cara e ser puxada o tapete. Do quanto abraça. Causas e as pessoas. Do quanto se entrega à vertigem convulsiva. Com as crianças e os cachorros - de quatro e duas patas. Do quanto foge ao padrão. De roupa, casa, pensamento e linha de raciocínio.
Com o quanto se recusa. A aceitar o morno, o protocolar, o cinza e o tradicional. Com o quanto reinventa o clássico. Com o quanto personaliza o visual, o texto, a crença, o beijo. Com o quanto foge às regras. Do trabalho, na família, dentro do bairro, do que ri, na cozinha, com a mochila nas costas e refazendo os planos.
A imaginação é que dá o tom da ruivice, não a tom do seu cabelo no berço. A mudança dos planos. A capacidade de perceber o quanto ainda não sabe. E querer descobrir. A paixão por outras culturas. E tudo que é novo, diferente, visto por outro ângulo, pensado de outra maneira, desconstruído, remodelado, reinventado, estilizado.
A disputa de foice pelo que acredita. A capacidade de se por no lugar do outro. O quanto deixa encher os olhos d´água. O sentir as borboletas dando rasantes no estômago. Como se fosse a primeira vez. O defeito de fábrica de acreditar nas pessoas. Como se ainda tivesse dentes de leite. A empolgação juvenil. O permitir que os olhos brilhem. Uma infinidade de vezes.
Olhar para dentro de si. Com medo e uma curiosidade de pré escola. Respirar até a entrada e saída do ar se equilibrarem. Não saber como assentar seus próprios ventos internos, mas sem ter ideia como, acalmar os dos outros. Se doar. Como se ainda não tivesse se sentido sem chão. Botar fé como se ainda não tivessem esvaziado o suficiente aquela original de fábrica.
Se recusar a alisar os cachos. Esquecer do anti idade. Não deixar a alma envelhecer. Se apegar ao perfume que remete a quando foi feliz e não sabia. Preferir a contramão. Se cansar de nadar contra a correnteza, mas não conseguir a ir a favor da maré. Voltar a ser a criança que nunca deixou de canto e relegar a maldade aos olhos alheios.
Lembrar do creme, esquecer da unha. Recordar da maquiagem, relevar a depilação. Mergulhar em leave in, desconsiderar a moda. Gostar do óculos, esquecer o brinco. Curtir o chapéu, não fazer ideia de onde está a corrente. Ter anéis do teatro, pulseirinha com história para contar, mas... onde foi parar o presente que ganhou e amou?
Não saber fazer contas. Querer aprender tudo. Fugir da lógica do lugar comum. Precisar conhecer o mundo. Também ter ouvido de um anjo torto quando nasceu "vai, ser torta na vida". Ter uma fome que não passa. E uma febre que se recusa a ser medida por termômetros. Uma ânsia de sorver a vida em grandes goles. E ter medo. Que não dê tempo.
Depende do quanto você se atira no abismo. Das paixões. Sejam elas corporativas ou de pele. Com o quanto se arrisca. Quebrar a cara e ser puxada o tapete. Do quanto abraça. Causas e as pessoas. Do quanto se entrega à vertigem convulsiva. Com as crianças e os cachorros - de quatro e duas patas. Do quanto foge ao padrão. De roupa, casa, pensamento e linha de raciocínio.
Com o quanto se recusa. A aceitar o morno, o protocolar, o cinza e o tradicional. Com o quanto reinventa o clássico. Com o quanto personaliza o visual, o texto, a crença, o beijo. Com o quanto foge às regras. Do trabalho, na família, dentro do bairro, do que ri, na cozinha, com a mochila nas costas e refazendo os planos.
A imaginação é que dá o tom da ruivice, não a tom do seu cabelo no berço. A mudança dos planos. A capacidade de perceber o quanto ainda não sabe. E querer descobrir. A paixão por outras culturas. E tudo que é novo, diferente, visto por outro ângulo, pensado de outra maneira, desconstruído, remodelado, reinventado, estilizado.
A disputa de foice pelo que acredita. A capacidade de se por no lugar do outro. O quanto deixa encher os olhos d´água. O sentir as borboletas dando rasantes no estômago. Como se fosse a primeira vez. O defeito de fábrica de acreditar nas pessoas. Como se ainda tivesse dentes de leite. A empolgação juvenil. O permitir que os olhos brilhem. Uma infinidade de vezes.
Olhar para dentro de si. Com medo e uma curiosidade de pré escola. Respirar até a entrada e saída do ar se equilibrarem. Não saber como assentar seus próprios ventos internos, mas sem ter ideia como, acalmar os dos outros. Se doar. Como se ainda não tivesse se sentido sem chão. Botar fé como se ainda não tivessem esvaziado o suficiente aquela original de fábrica.
Se recusar a alisar os cachos. Esquecer do anti idade. Não deixar a alma envelhecer. Se apegar ao perfume que remete a quando foi feliz e não sabia. Preferir a contramão. Se cansar de nadar contra a correnteza, mas não conseguir a ir a favor da maré. Voltar a ser a criança que nunca deixou de canto e relegar a maldade aos olhos alheios.
Lembrar do creme, esquecer da unha. Recordar da maquiagem, relevar a depilação. Mergulhar em leave in, desconsiderar a moda. Gostar do óculos, esquecer o brinco. Curtir o chapéu, não fazer ideia de onde está a corrente. Ter anéis do teatro, pulseirinha com história para contar, mas... onde foi parar o presente que ganhou e amou?
Não saber fazer contas. Querer aprender tudo. Fugir da lógica do lugar comum. Precisar conhecer o mundo. Também ter ouvido de um anjo torto quando nasceu "vai, ser torta na vida". Ter uma fome que não passa. E uma febre que se recusa a ser medida por termômetros. Uma ânsia de sorver a vida em grandes goles. E ter medo. Que não dê tempo.
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
Fim de Tarde
Na fase em que tudo é para sempre
Soltamos faíscas protegidas por sombras
num ensaio do deságue
Sua urgência dançava sustos no meu maior órgão
Mas sua ironia encontrou sarcasmo à altura
A convulsão que nos provocávamos
levou quase uma vida
para ousar se entrelaçar outra vez
O preconceito branco do teu lado
me doía com ralado no asfalto
O palco mergulhar nas tuas raízes
te magoava como criança ferida
Tua nostalgia da terra nunca conhecida
me arrancava pedaços
Mas só sabíamos sentir aos solavancos
E carimbar nosso desejo
em algodão ou sarja
Era sempre um soluço
esse alvoroço mal disfarçado de amor
Ter voado mais longe que o imaginado
Às vezes ainda revira
esse baú de fotos em sépia
Soltamos faíscas protegidas por sombras
num ensaio do deságue
Sua urgência dançava sustos no meu maior órgão
Mas sua ironia encontrou sarcasmo à altura
A convulsão que nos provocávamos
levou quase uma vida
para ousar se entrelaçar outra vez
O preconceito branco do teu lado
me doía com ralado no asfalto
O palco mergulhar nas tuas raízes
te magoava como criança ferida
Tua nostalgia da terra nunca conhecida
me arrancava pedaços
Mas só sabíamos sentir aos solavancos
E carimbar nosso desejo
em algodão ou sarja
Era sempre um soluço
esse alvoroço mal disfarçado de amor
Ter voado mais longe que o imaginado
Às vezes ainda revira
esse baú de fotos em sépia
Expulsa do Quase Paraíso
Na época em que aumentava virtualmente a família indígena Kaiowá, uma plaquinha artesanal barrava o retorno dela para casa com um "não passe" disfarçado em "inoperante" no ponto de ônibus. Justamente quando tantos reafirmavam online suas raízes guaranis, que nada mais eram que um apoio à legítima reivindicação deles pela terra, a casa onde mora deixa de ser dela. Um toque de recolher amplia o alcance do chefe do tráfico local ou da prepotência policial? De qualquer forma, como uma Guarani Kaiowá de pele clara, também é despejada para a beira da estrada, desta vez da Tancredo Neves e ali, como os índios impedidos de plantar nos acostamentos, não pode armar tenda. Seu pai colocou meia vida de trabalho na casa que chama de sua, mas já não sabe se ela é da PM, dos ladrões ou se serve de abrigo a motoristas que temem ônibus incendiados. Pode voltar para casa de uma amiga, mas a roupa dela em seu corpo atesta que só "saímos de casa quando ela já saiu de nós". Ensaia um cochilo num banco de terminal urbano, mas comprova precisar de condições ideais de temperatura e pressão, embora se sinta uma intrusa em seu próprio bairro: não dormiria naquela firmeza metálica pouco convidativa. Lamenta o amigo de categoria ambígua fora do país, pois agora teria uma justificativa e tanto para pedir guarida na "pombalândia" em que mora (o conjunto em que mora diminuiu sua grandeza perto de onde ele vive). O cansaço para encarar baldeações e combinações telefônicas com outras amigas leva à saída mais previsível: voltar ao metrô, mudar depois para o trem, mudar de cidade e pegar outro ônibus, desviando da maior favela de São Paulo. Aumentou a via-crúcis para casa, mas ao menos no município vizinho, a circulação não tinha sido suspensa. Finalmente encontrou uma vantagem de morar na divisa. Virou a revista do avesso para se irritar menos de precisar pegar "uma jangada, um cipó e uma balsa". Não se abalou quando um passageiro reconheceu na publicação que lia um personagem de "trash movie". E comendo letrinhas ávida, mal percebe os altos e baixos da calçada que nunca viu uma guerra, mas também nunca perdeu seus buracos. Chega mais tarde, cansada e fazendo torcida organizada para os traficantes, policiais, incendiadores de ônibus e motoristas suspenderem batalhas no dia seguinte.
terça-feira, 6 de novembro de 2012
Quando nós ainda...
- Era das coisas mais previsíveis que amava nele. Como ficar a madrugada inteira brincando de Autorama, fazendo de conta que ainda estávamos na infância. - disse o gordinho que falava bem.
O cigarro circulou pela roda de amigos sentados no chão da praça.
- Nela não, gostava do menos óbvio. Como quando ela fugia ao roteiro previsível e não se besuntava de creme e perfume e tinha o cheiro dela mesmo. - o fofo era fora do padrão, mas "magnetizava" a maioria dali.
Ela, até então atraída pelo menos clichê da turma, tomou um solavanco: pô, bi... Toda a humanidade era concorrente! Recusou a oferta do cigarro:
- Depois que encontrei a respiração sem falta de ar, faço exercício respiratório até na fila do banheiro!
O gordinho bi até esqueceu de tragar com a personalidade dela dançando em meio à unanimidade pelo relaxamento fácil. Não resistiu:
- É verdade que agiliza o orgasmo?
- Bom isso já não depende só de mim. A não ser que a companhia da noite seja o dedo.
A roda se dispersou em risadas. Inesperadamente ela se acolheu nele:
- Tem outra blusa?
- Mas o frio passou.
- Quem está circulando ar coletivo pré aquecido pra dentro são vocês, não eu.
O gordinho a abraçou.
- Fico querendo sentir de novo aquele primeiro barato, dos dezesseis anos. - agora o acelerado era o saudosista.
- Só que nem você é mais o mesmo, nem a erva. - analisa a sarcástica.
- Na minha primeira vez, minha paixão de infância prometeu que até nosso amor ganharia outras formas. - relembra a mais tímida - Mas nunca senti nada!.
- Quando traguei pela primeira vez, meu pai ainda morava conosco e não precisava agendar nossos reencontros.- soluça o grilado.
- Conheci a maconha e Caraíva juntos pela primeira vez. Nunca haverá praia como aquela. - suspirou o que já dançava como se ninguém estivesse vendo.
- Selei uma amizade de adolescência com um baseado.- recordou a mais brava - Só que não nos vimos mais!
- Quando quero criar mais livremente, preciso de um beque. - divide a irriquieta.
- Só sei esquecer os lugares que não voltei e as pessoas que partiram com vinho. - conta a das tiradas inesperadas, ainda abraçada ao gordinho.
- Gente daqui a pouco teremos que passar um lenço e apagar o cigarro. - conclui a pé no peito da turma.
- Pode ser que encontre um fumo como o da minha adolescência...
- Se reencontrar o primeiro amor, acreditarei nele como antes?
- Podendo reencontrar meu pai sem bloquear agenda, não terá mais a graça de antes.
- Caraíva deve ter parado no tempo como aquelas redes que balançavam nas varandas em slow motion...
- Aposto que minha amizade dos catorze anos continua a mesma.
- O que estimula é a cada novo cheiro, bater outro barato e inventar de um jeito diferente.
- Como todo mundo resolveu divagar pra uma direção diferente, podíamos sair de fininho. - tentou o gordinho com a das sacadas impagáveis.
- Com ou sem erva?
- De cara limpa que deve ser até melhor.
- Sem nem um vinhozinho?
- Quem sabe?
- Só temo de antemão quando o próximo te convidar para apostarem corrida de Ferrorama.
- Ah, aposto que na primeira ocasião que te surpreenderem você também voa longe. - ele despistou.
Ele tinha razão.
Topou.
Mas se encheu de creme no dia seguinte. Só para se diferenciar.
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
Dor de amor corporativa
Sair de um trabalho apaixonante acarreta uma dor de amor
similar a dos finais de relacionamento. Todas as lições budistas sobre desapego
são esquecidas, como quando qualquer paixão nubla a visão da mais sensata das
pessoas. Poder escrever mais livre, exercitar outras inteligências, tira os pés do chão
de profissionais menos desavisados. Mergulha-se em queda livre, como quem se
doa a um trabalho pela primeira vez. Mesmo na septuagésima experiência. O expediente é esticado sem lembrar de
casa para arrumar, parentes para ver e projetos pessoais pulsando atenção personalizada. Contorna-se
problemas de estrutura com recursos próprios, esquecendo que adicionais por
isso não foram previamente combinados.
O texto é escrito e editado à exaustão, em busca das
melhores formas de se contar aquela história. Ralar além do combinado baixa a guarda, deixa escapar confissões, sem recordar que talvez o pé atrás fosse a melhor entrada em terreno
novo. Os paus técnicos geram medo do prejuízo que a dedicação pode sofrer, sem
saber que se a má vontade das operadoras campeãs de reclamações no Procon será
levado em conta. Os detalhes do trabalho são compartilhados com amigos com
empolgação quase infantil – que todo amor à primeira vista sofre de desvario adolescente, como quem publica um texto pela primeira vez e toda a experiência da
última década e meia serve só para a produção, não contribui com lembranças das
instabilidades do mercado.
As informações apuradas contribuem para o abençoado
aprendizado indireto que só esta profissão proporciona. Lembra da tia que
brinca que ela conversa de “colostro a física quântica”, de tanto que já
entrevistou, redigiu, revisou, pesquisou, editou. Ama ouvir quem entende muito
ou gosta demais de qualquer assunto, pois esses é que dão as melhores aulas, que
rendem os textos mais encorpados, que ela também gosta de ensinar, ainda que
seja com a palavra escrita. Quem tirava suas dúvidas era até interessante.
Lembra da vizinha que sempre fica com alguém no trabalho, “que é uma vingança
contra o capitalismo”. Não, ainda não é ativista tão radical assim.
Até passar vontade no bairro em que quase tudo é
“incomprável” tinha seu lado divertido: erguia os óculos e fazia uns passeios
com astigmatismo pelo local. Não captava os detalhes, ficava só com
umas vagas lembranças de cores, formatos distorcidos, nada despertava tão
fortemente impulsos de compra em quem está com planos maiores a longo prazo e
precisa segurar o bolso para realizá-los. Mas admitia que era uma perua
enrustida: tinha bom gosto, os rendimentos só não acompanhavam. Como se tudo
isso não bastasse, se divertia no expediente, descobria coisas novas e pode - mesmo que mais rápido que gostaria - trabalhar com a máquina que todos qualificavam como a top de linha.
Cortar o apego que ela criou a esse lugar descolado em que
inclusive trabalhou passando mal tem todos os tons de um drama amoroso:
lágrimas, ligações para os amigos, tentativas de entender o episódio na
terapeuta, saudades dos detalhes que envolveram a relação, necessidade de
purgar a dor sozinha e uso da raiva em projeto pessoal para sobreviver
emocionalmente. Ela inclusive esquece que já passou por isso, que as emoções
aflitivas são impermanentes, que enquanto estivermos no capitalismo será assim,
que o mercado é injusto e não tem vaga para todo mundo. Passa o dia seguinte de
pijama escrevendo até as oito da noite. O pai não entende que quem escreve não
tem um dom, tem uma sina e escreve para não morrer, pois é uma avalanche
interna de palavras, sensações, sonhos, conexões, lembranças... Amores.
Acaba de parir mais um: projeto pessoal antigo, empoeirado
na prateleira de sonhos, estimulada pela terapeuta e pelo que ouviu no término
da parceria que rendeu a dor de amor corporativa. O amigo tem razão: mesmo se ele
não ganhar dinheiro com isso, continuará desenhando. Mesmo que ela não seja
remunerada, as palavras teimam em sair, como cavalos selvagens precisando
ganhar o mundo. Nada impede de dar continuidade aos textos mais focados em sua
paixão que rendeu até a segunda faculdade, como idealizou lá longe, na pré
infância de seus sonhos inconfessos.
A Três
Quando se conheceram ficou meio com aquela sensação juvenil
de vertigem convulsiva. Conversaram, gostou do papo, mas o que mais justificava
a fixação inicial era o brilho dos olhos. De resto tinha aquela morenice que
sempre a atraiu. E os cabelos grisalhos, bem estes eram uma novidade em seu
repertório. Gozado que o que ele contava ia e vinha, com uma trilha sonora,
quase como nos filmes “água com açúcar” dos quais se dizia tão avessa. A
risada, o colega tinha razão, era a mais bela curva do ser humano. Mas enfim...
Num ambiente tão pouco propício... O sanatório daquela agência, que parecia
virada do avesso. De repente podia considerar a filosofia de vida da vizinha,
de a cada serviço conquistar mais um, pois era uma “vingança legítima contra o
capitalismo”. Na primeira virada de madrugada em que ele se safou e juraram por
rebeldia de pião recalcado que deixariam as mais pesadas tarefas para o retorno
dele, desejando “de lambuja“ uma hérnia de disco, deixou escapar:
-Eu me pré disponho a fazer massagem nele.
O que já seria suficiente para movimentar a “rádio pião”
interna. Mas um amargurado de plantão já cortou “seu barato”:
- Ele namora. Um cara.
E quem disse que isso era empecilho? Ela sempre fantasiou
perverter um gay. Como ainda não tinha acontecido, não sabia por onde começar.
Mas já estava naquela fase em que seguia a música “deixa estar que o que for
para ser vigora”, sinal de que sua ansiedade patológica estava a caminho da
cura. Riu sozinha quando percebeu que embora ainda roesse as unhas, já estava
praticando o que recomendava o colega “dá o melhor de si e deixa fazer
a curva do rio. Se tiver que retornar, virá”.
Noutra madrugada virando trabalho em cima da hora, foi
ajudá-lo com não sei o que, disseram que a sala em que ele apagava incêndio
estava com serviço saindo pelo ladrão, fez de conta que não tinha o que fazer e
passou por lá como quem não quer nada. Fazendo o trabalho mais operacional do
mundo, ouviu dele:
- Seu cheiro é bom.
Ficou sem graça e feliz:
- É uma mistura de creme, desodorante e perfume, pois como
diz a revista TPM: queremos nos livrar dos nossos cheiros naturais.
Mas era tanto o que por em dia e tanto cansaço para se
livrarem que não passou disso.
Meses depois foi preciso viajarem todos juntos a negócios.
Apesar de toda dor de cabeça dos primeiros dias e da maioria das horas,
arrumaram tempo para tomar um pouco de sol, “aos 45 do segundo tempo”. Vendo
que ela se contorcia para passar o protetor solar, ele veio se oferecer para
besuntar as costas dela, que brincou:
- Acho que esse não tem o perfume que tinha reparado aquele
dia.
- O gostoso é o seu cheiro mesmo, não tem perfume artificial
nele.
Ficou meio orgulhosa e sem saber como reagir. Tanto era
verdade o que ele falou que antes de apertar o creme e deslizar na pele dela,
ficou cheirando, a ponta do nariz dele brincando com os pelos claros dela, que
se arrepiava e pedia que o momento não acabasse, nem chegasse mais ninguém do
trabalho para cortar o clima.
Pensou cedo demais e os principais fomentadores da rádio pião
quase que "brotam do chão". Os dois vão esfriar os ânimos na água. E se olham
como quem tem a dizer, mas acredita que as palavras para a ocasião ainda não
constam em nenhum vocabulário.
Numa lavagem de pratos ele encontrou com ela esquentando
comida na pequena copa do trabalho e foi pego pelo estômago:
- Sua comida também cheira bem.
-Quer que vá cozinhar para vocês? – desta vez foi rápida no
gatilho.
-Pode ser. Mas não somos naturebas como você.
- Olha que converto qualquer um com minhas criações heim?
- Pago para ver.
- E qual a moeda desta aposta?
-Vamos ter que reinventar a roda amorosa.
- Só se a transformarmos em triângulo.
- Quando?
- Sábado à noite.
- Às oito.
- Na casa de vocês ou na minha?
- Na nossa. Preferimos terreno conhecido onde sabemos como
pisar.
- Sem problemas. Me manda o endereço.
- Passo sim.
Desta vez, milagrosamente não apareceram os urubus de
plantão da agência.
A aposta aconteceu ainda no início da semana, que demorou a
passar. Mas eles foram fazendo com que ela corresse mais rápido alongando
quando as mãos se encontravam manipulando brinde, fazendo questão de se
encostar para cruzar a agência e trombar propositadamente com o que estava
sentado só para pedir desculpas e deslizar por um ombro exposto. Alguma coisa
impalpável fervia a olhos nus, mas a rádio pião ainda não tinha evidências e
até prova em contrário, ele era homo convicto.
Na grande noite, ele nutria expectativas maiores que o
companheiro, ainda não iniciado no universo feminino e a princípio nem
interessado em adentrar nesta saara. Mas ela foi chegando com seus sabores
leves, super temperados e inundando a casa de aromas, que foram provocando
roncos nos estômagos ansiosos deles, que raramente saíam do lugar comum
carnívoro. Algumas viagens pelas cores de ervas exóticas depois, se deliciaram
os três com uma versão vegana da bacalhoada e como os dois comeram gemendo, ao
término da refeição ela ainda foi para a cozinha, no que parecia uma iniciativa
de lavar a louça, quando justamente o que não tinha interesse inicial na aposta
foi impedi-la.
Entre esbarros, sem gracice e olhares furtivos, ficaram meio
sem jeito ali na cozinha americana. O que já a tocava propositadamente no
serviço chegou quando o silêncio inundava o ambiente e levantou o cabelo dela
num rabo de cavalo. Quem nunca tinha pensado em interagir com uma mulher de
repente se viu ligeiramente atordoado com aqueles fios que teimavam em fugir do
elástico e - quem diria - com o suor do trabalho braçal de cozinhar escorrendo na nuca. De repente um cheirou
– quem diria – a curva entre a axila e o braço e o aroma dela se misturava com
o resto de desodorante e um pouco de suor e era estupidamente excitante. O
outro se perdeu naquela estreita faixa entre o nariz e os lábios e ali se
demoraram uma vida.
Ela se aturdia entre o frio na barriga e aquele torpor de
começo de paixão, mas ainda teve força para fazer um carinho no final da orelha
do colega de trabalho, onde começava o pescoço e brincar com a parte interna do
braço do outro. E foi ali no chão de azulejos mesmo que foram fazendo o corpo
de um de mapa e o do outro de universo desconhecido. Brincaram de cabra cega um
no outro. Era uma viagem nova para os três e empreendê-la juntos tinha um sabor
nostálgico de adolescência, que a vida era uma eterna primeira vez.
Os dedos e lábios correram lugares até então incomuns para
os três: atrás do joelho, parte interna do cotovelo, lateral da barriga,
comecinho do pé, canto da batata da perna... Vinham de relacionamentos muito focados no óbvio e a urgência na descoberta de outras fontes de arrepios e suspiros era
tardiamente represada. Se esquadrinharam como quem descobre uma primeira vez
tardia: o ménage a trois em que não aconteciam sobra de parte alguma. Os
encaixes eram precisos e os gemidos provavam que o ímpar podia ser numa fração
de tempo inacreditavelmente suficiente.
A exaustão foi tanta que no dia seguinte todos se atrasaram para seus plantões e a chegada dos dois juntos, de cabelos molhados e rindo até das broncas
incendiou a vocação geradora de boatos interna. Agora mais que nunca
criavam formas de roçar a ponta das mãos, passar a perna nas costas um do
outro, o braço no cabelo, a barriga na cabeça, no escritório, na cozinha, no
corredor do banheiro. Riam como se tivessem voltado aos treze anos e contavam
os minutos para reencontrem a terceira ponta daquele polígono imprevisível e
incendiário.
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Às Escuras
A foto saiu da bandeja e se revelou inteira, como quem se
despe para o homem que ama. O professor se orgulhava da aluna ter aprendido
tanto em tão pouco tempo:
- Quando a gente foca um ponto e deixa o resto desfocado
está começando a pegar um caminho de escolher o próprio estilo. – incentivava ele.
- Sou apaixonada por preto e branco. – se animava a aluna.
- Dá para desenhar mais fotos de alguns perfis.
- Tem outro tom que é lindo...
Ela vai passando outra folha fotográfica na bandeja e a
demora do produto químico reagir cria uma expectativa. Naquele breu, pouco se
vêem, são os olhos que conversam entrelinhas.
Durante a fixação e revelação, ela leva um susto:
- Putz! Mergulhei o relógio da 25 de Março nos químicos...
Será que sobrevive?
- Tem uns Ching Ling que são até resistentes. – torce o
professor, pendurando imagens que imobilizam o olhar no varal das melhores
criações.
- Esse tom dá para explorar muita coisa bacana! – quando ela
tira a imagem da última bandeja, ela faz voltar no tempo.
- Sépia é um convite ao passado! – se anima ele.
Ela mesma pendura sua foto produzida no varal dos alunos.
- Você diz que a fotografia é a morte...- não entende ela.
- Ela fixa o que nunca mais conseguimos retomar. – explica ele.
- A graça é essa. – ela acredita.
O laboratório tinha tamanho suficiente para criar um clima
meio claustrofóbico. Não em quem de repente se vê com outros olhos. Quando a
blusa dela escorregou pelo ombro e ele foi surpreendido por umas sardas meio
escondidas, pararam de esmiuçar a paixão que tinham em comum. E naquele breu
convidativo, deixaram que os olhos criassem outras químicas além das que
estavam nas bandejas, com cheiro mais convidativo. Ele suou frio, o que fez o
óculos dele escorregar e pela primeira vez ela viu que embora o professor tivesse
olhos puxados de índio, eram claros. As pupilas se conversavam e as palavras
foram supérfluas. O relógio dela roçou a parte interna do braço dele, que teve
coragem de permitir que a conversa invadisse aquele momento:
- Ele continua funcionando!
- A hora da aula estourou
As costas dela quase que se encaixaram na única bancada de
máquinas, que naquele momento estavam emprestadas e foi natural se tornar
convidativa. Ela roçou a perna que escapava da mini saia nos pelos dele que
fugiam da bermuda. Seu toque baixou o resto de blusa que ainda teimava em
esconder o resto das sardas e foi encontrando o caminho que a deixava meio sem
ar. As mãos dela se esconderam entre a as costas e a blusa dele. Descobriram um
encaixe em que quase acendiam o laboratório, ainda na penumbra. Parte da roupa
que os separava foi atirada quase longe, que o espaço não era para tanto. Se
amaram com uma ânsia que precisava ser sorvida em grandes goles, duma sede
adiada há tempo demais. Quando a mão dele se esticou, alcançou a única máquina
ainda não retirada do laboratório da faculdade e ela ousou acender a luz.
Seus cliques a buscaram como quem tateia o outro com a
lente. Ela se abria como quem acorda e se espreguiça com todo o tempo do mundo.
O amor é um jogo de pique e pega. Ela ensaiava uma timidez que ele não
conhecia, mas acabava encontrando um espaço para registrar a risada que quebra
a sem gracice. Ele não conhecia os caminhos que levavam à essência que o
obturador quer registrar, mas as sardas eram uma pista que ele se encantava em
explorar.
A máquina que uniu este vai e vem era digital. A maioria que
fazia o curso lá gostava de brincar com as possibilidades esquecidas das
câmeras tradicionais. Conseguiram ver as fotos na urgência de uma paixão que se
recusa a esperar. Ela riu:
- Uma prima diz que queria ficar com um fotógrafo só para
ele fazer poesia para sempre com a lente.
- Se ela viesse aqui no mesmo horário e montássemos
praticamente o mesmo cenário, mesmo que ela se parecesse com você, as imagens
nunca sairiam nem de perto parecidas.
Ele arrumou o óculos.
- Entendeu “garotinha ruiva” porque a fotografia é a morte?
Cabra cega
- Fiquem de costas um para o outro! – pedia o diretor.
Como criar entre dois estranhos o clima de personagens que
se amavam, mas não podiam concretizar aquela paixão? Era o caminho que tateavam
juntos.
Ela não o achava nem atraente, nem asqueroso. Estava numa
zona tão neutra que nem sabia por onde iniciar este trabalho cênico, então se
entregou às orientações da direção. É que quando tocaram suas costas, um lastro
de memória olfativa disparou as mais antigas memórias – dizem que aquelas que
vêm pelo nariz são as mais rápidas. Mas nem era cheiro de perfume, era dele
mesmo, que depois daquele aquecimento demorado não tinha banho que resistia.
Ele achou que ela lembrava uma prima com quem teve problemas
a vida inteira e também não tinha ideia de por onde puxar o sentimento que a
peça cobrava. Sua única escapatória foi confiar na direção, pois por conta do
que já tinha estudado e experienciado não estava conseguindo. Encostando às
costas dela, sentiu que os suores teimavam em se misturar e aquilo disparou sensações
que ele não lembrava ter sentido. Meio incômodas e ao mesmo tempo
irresistíveis.
Parecia que passaram horas assim. E foram poucos minutos. Um
enfaixou os olhos do outro, acendeu incenso, deu comida na boca e também se
deixou tapar os olhos. Se tatearam. Por um tempo infindável. Teve gente no
teatro que não tinha a ver com o processo e foi comer, tomar café, ao banheiro.
Eles não. Perderam a pressa. O diretor colocou músicas que eram um golpe baixo.
E o tempo parou. Onde tinha ido parar a cisma que um tinha com o outro? Sabe
Deus.
Um alcançou o incenso. E brincou de quase queimar o outro,
que encontrou a comida, ensaiou dar na boca e enrolou para realmente por na
língua. Encontraram um ritmo e dançaram como se os outros não existissem.
Criaram um novo movimento, sem receio do julgamento alheio, se aquilo tinha
sentido ou não. Deitaram no chão. As mãos se encontraram. Deram choque.
Fugiram. Se reencontraram. Quase saíram faíscas. Se agacharam. Se trombaram.
Riram como crianças. Desenharam um no outro formas que ficaram esquecidas na
infância, como quem reaprende que todo mundo desenha, só é reprimido. E o dedo
pode repentinamente virar um pincel.
Brincaram, como bailarinos, de ocupar plano médio sem se
ver. Mas às vezes se cruzavam. E deixavam atiçar a imaginação de que estavam
iluminando o espaço, mesmo com luzes apagadas. Gostavam de acreditar que suas
energias tinham essa capacidade. E cansaram. E se apoiaram. E caíram deitados,
loucos para experimentar os textos em ensaios. As falas saíram urgentes,
viscerais, orgânicas. Não viram o tempo passar. Não lembraram de tirar as
faixas dos olhos. Para o diretor, foi fácil deixar o processo fluir. Tinham
encontrado o caminho, depois de tanto estranhamento
E meses depois levaram aquela entrega para o palco. E
sentiam o inesperado desejo brotando e ouviam vagamente o diretor pedindo que
não baixassem a guarda, que aquela vontade tornava a ficção mais real. E mais e
mais gente vinha vê-los. No início, claro, parentes, amigos, vizinhos, colegas,
familiares. Depois, os olhares que “de vez em nunca” distinguiam na platéia eram
estranhos. E aí sim, davam toda entrega do mundo, como quem não se constrange
de ser reconhecido embaixo de tanta maquiagem, luz, figurino, acessório de
cena.
E contavam os dias para a temporada acabar. Como a maioria
dos atores que conheciam, trocavam um na frente do outro. Mas ao contrário dos
colegas de profissão que encenavam histórias que mexiam menos com o que não
conseguiam nomear, mas sentiam brotar dos poros, dos cabelos, dos olhos, da
boca, do nariz... Se olhavam diferente entre uma mudança de figurino e outra.
Juravam que de luzes apagadas fariam reacender toda a coxia. Lamentavam que
houvesse pouca troca de figurino.
Ao contrário de outros trabalhos, contaram as apresentações
para a temporada acabar. Se olhavam meio de esquiva quando se trocavam no
finzinho de cada noite. Pela primeira vez, torciam para não prorrogar. Adoravam
que o teatro fosse pequeno, nem evitavam se roçar nas entradas e saídas das
cenas. Riam como crianças encantadas no jardim da infância quando os olhares se
cruzavam. Mas com a memória ao jogo cênico que mais funcionou, adoravam brincar
de cabra cega antes de se apresentar.
Na última noite se deram como nunca aos
personagens. Parecia que nem tinha platéia. Estavam mais à vontade que em suas
próprias casas. Não ouviam mais a música. A luz inacreditavelmente não dava calor.
E se atiçavam com o que os sentidos permitiam, já que ainda como os
personagens, não podiam se encontrar. Não ouviram o que o diretor dizia. E na
última fala se enfiaram no primeiro carro emprestado e correram para o lugar
mais ermo que conheciam e se beberam. É que o gosto era diferente do sonhado. O
que a gente imagina é melhor do que quando acontece. E se afastaram, ficando
com aquele gosto meio amargo na boca.
Só sei me dar até precisar de soro
Eu só sei me dar demais
a ponto de sair sangrando
de não dar conta de enxugar o suor
das lágrimas arderem meus olhos
Eu só sei me dar demais
de abrir mão de sonhos pelo caminho
de deixar em falta quem não merece
de adiar minhas convicções
Eu só sei me dar demais
de sair endividada
de perdoar o inaceitável
de me envolver até a raiz dos cabelos
Eu só sei me dar demais
de ficar em déficit
de queimar foto
de fazer vivência
de meditar, fazer retiro
e ainda pedir segundo round
Eu só sei me dar demais
e não perder mais o momento
e empurrar o outro rumo ao seu próprio crescimento
e salvar sorrisos
Eu só sei me dar demais
e descobrir depois que também preciso receber
e virar noites por causas novas
e estudar assuntos assustadores
e mudar postura online
e aconselhar amiga a proteger o filho
Eu só sei me dar demais
e esticar o expediente
e bancar a babá
e fazer o que nunca fiz
e virar mãe no susto
Eu só sei me dar demais
e fechar os olhos pro assustador
e embrulhar pra presente meu empenho
e precisar do apoio
e me assustar com o vácuo
e acelerar o pensamento
e por os pés pelas mãos
Eu só sei me dar demais
o tanto que ninguém
nunca fez por merecer
e deixaram a balança
no negativo
Eu só sei me dar demais
até ficar com anemia
até que me esgotem em sangria
até que me contem o que não dou conta
até que me ralem no asfalto
até que me derrubem do salto
Eu só sei me dar à exaustão
a ponto de sair sangrando
de não dar conta de enxugar o suor
das lágrimas arderem meus olhos
Eu só sei me dar demais
de abrir mão de sonhos pelo caminho
de deixar em falta quem não merece
de adiar minhas convicções
Eu só sei me dar demais
de sair endividada
de perdoar o inaceitável
de me envolver até a raiz dos cabelos
Eu só sei me dar demais
de ficar em déficit
de queimar foto
de fazer vivência
de meditar, fazer retiro
e ainda pedir segundo round
Eu só sei me dar demais
e não perder mais o momento
e empurrar o outro rumo ao seu próprio crescimento
e salvar sorrisos
Eu só sei me dar demais
e descobrir depois que também preciso receber
e virar noites por causas novas
e estudar assuntos assustadores
e mudar postura online
e aconselhar amiga a proteger o filho
Eu só sei me dar demais
e esticar o expediente
e bancar a babá
e fazer o que nunca fiz
e virar mãe no susto
Eu só sei me dar demais
e fechar os olhos pro assustador
e embrulhar pra presente meu empenho
e precisar do apoio
e me assustar com o vácuo
e acelerar o pensamento
e por os pés pelas mãos
Eu só sei me dar demais
o tanto que ninguém
nunca fez por merecer
e deixaram a balança
no negativo
Eu só sei me dar demais
até ficar com anemia
até que me esgotem em sangria
até que me contem o que não dou conta
até que me ralem no asfalto
até que me derrubem do salto
Eu só sei me dar à exaustão
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