quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ainda na rua uma hora dessas?!

Saio da farmácia e quando entro no metrô, sou surpreendida pelo telefonema da irmã que Deus não deu, mas a vida concedeu, preocupada com meu destino e aconselhando no celular:
-Vai dormir na sua amiga. Decretaram toque de recolher no Heliópolis e não sai mais ônibus nenhum do Terminal Sacomã desde as 19h30.
Bem que eu e o professor de história desconfiamos que a mensagem não tinha sido compreendida ao término da 14ª Caminhada pela Paz, ao ver os alunos da capoeira praticando golpes tão efusivos depois de andar a tarde toda, 4,5 km pela comunidade com a mensagem do bairro que queríamos para nós.
Queríamos. O editor de vídeo favorito da minha vida tem razão: este tempo verbal indica ilusão. Ou como respondeu um cineasta espanhol quando questionado por um estudante: “a utopia serve para nos fazer caminhar”. Sintonizo tudo que é rádio pelo celular, mas a Voz do Brasil impera com suas notícias nacionais. Eles defenderam a manutenção do programa neste horário há poucos dias – mas a necessidade de novidades locais deveria vir na frente, que já estamos fartos das imposições federais.
Como é decretado um toque de recolher? Sim, pois a comunicação não é tão eficiente quanto nos rádios internos do metrô, a ponto de auto falantes reverberarem a preocupante imposição: “não entrem nem saiam de suas casas, comércios ou escolas: as ‘quebradas’ da comunidade agora são nossas”.
Os chefes do tráfico não mandam release. “Chefões da máfia regional decidem mandar o bairro parar às sete da noite”. Não. Provavelmente um zum zum zum, digno de rádio pião fabril, “esparrama” o apavorante alerta: a movimentação pelo bairro está congelada. Mais que isso, proibida. Quem decide quem entra e quem sai são eles. Depois de 14 anos de caminhadas pedindo paz na região, o que conseguimos? Nos espantar constatando que somos reféns desta ordem surda, enquanto lemos no dia seguinte no jornal gratuito que o governador afirma: “incêndios de ônibus e mortes de policiais são episódios ações isoladas”. Isoladas dele, em seu castelo de faz de conta do Morumbi. Para a maior favela de São Paulo – sim, estamos próximos dela e de seus tantos programas comunitários, agora já sem tanto orgulho, isolados estamos nós.
Alguns em casas de amigos. Outros presos no terminal de ônibus, perdidos feito baratas tontas: fugir para um parente? Tentar uma rota alternativa? Proibidos de voltar para casa. Casa? Já não é mais nossa. O direito de ir e vir é letra morta. Ninguém nos salvará do risco de bala perdida nos acertos de contas entre policiais e bandidos. Do medo de seu ônibus ser o próximo alvo. Não por acaso tinha ouvido moradores dos bairros próximos das regiões da Anchieta reclamarem destes perigos no metrô, ontem ou anteontem.
A parte que lhe cabe neste latifúndio é rezar. Ou melhor, lembrar em quem votou nas últimas eleições e fazer diferente. Um pouco desta várzea urbana está sendo colhido por alguma irresponsabilidade ou distração que a maioria plantou. A inconformidade é de quem não conduziu de volta ao poder estes governantes “blasé”, que não tem nem uma declaração sobre as baixarias de ontem no jornal. A TV, ligadinha no maior canal do País no café em que me refugiei com uma amiga, também não colocou no ar nenhum plantão alarmante. Tudo azul no céu de brigadeiro da mídia. Enquanto somos impedidos de voltar para nossas casas, a casa não cai para eles. Por enquanto, pois o poder rasteiro dos traficantes sem propaganda da periferia de São Paulo está afiando suas garras. Se continuarmos assim, qualquer dia acordaremos no Complexo do Alemão.

Atualização de 8 horas atrás não me ajudaria a saber se já dava para voltar para casa na noite de ontem, né Estadão?

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Um dia vira a dor que já não dói...

Ontem fui me despedir da minha terceira avó: a que cuidou de mim quando minha mãe voltou a trabalhar. E não só de mim, também "olhou" as netas, que reencontrei já tão crescidinhas quanto eu e embora mais novas, já com filhos. É meio estranha esta percepção, mas foi um velório com muito reencontro de vizinhos  da minha periferia favorita. Já ouvi dizer - em algum centro espírita, provavelmente, onde recomendam "o silêncio também é uma prece", que aquele blá blá blá todo ao redor de quem acabou de partir não é bom para quem está numa passagem delicada. Mas como tagarela convicta só fui em despedidas meio parecidas: pouco solenes, com Deus e o mundo se revendo e pondo a conversa em dia. Os loucos se atraem: tenho muito amigo que adora uma prosa, seja lá onde for. Ao menos ontem não tinha meu tio que nem piadas economiza nestes ambientes: as últimas deles foram um tanto quanto desastrosas (se despediu com um "até o próximo" e quinze dias depois morreu o filho do morto, mas isso foi em família, onde todos mandaram ele "praticar o nobre silêncio" no fatídico reencontro). Revi meus ex sogros e cunhada, fiquei aliviada de ver que ninnguém está aborrecido. Também soube que minhas companheiras de infância, com quem dividi esta "avó adotada", já moraram fora, casaram e estão trabalhando com o pai. Como não relembramos muito nossos áureos tempos de "criança feliz", acho que hoje levantei meio nostálgica. Nós brincávamos de casinha ocupando quase todo o apartamento da "avó" - uma visitava a outra no cômodo ao lado. Ela teve mesmo muita paciência. Quando minha mãe retomou a dupla jornada tipicamente feminina, eu fazia chantagem, embora nem lembre, mas claro que ela não esqueceu: dizia que não comeria a maçã que deixava para quando voltasse da escola. Dava uma mordida, jogava fora e tomava uma providencial bronca. Era daquelas que abria a lancheira e dividia com Deus e o mundo, as professoras achavam lindo, elogiavam para meus pais, mas a intenção era não comer mesmo, eu quase vivia de luz. Eram tempos libertários: sem a mãe no pé, comecei a relaxar para escovar os dentes e tive minhas primeiras cáries. Por incrível que pareça ontem também estava lá a dentista de nossa infância, que dava brinquedinhos de plástico, graças a qual nunca tive medo de sentar na única cadeira em que fico quietinha. Levei uns anos para entender que minha mãe tinha medo é do boticão, que só aparecia para arrancar os dentes, quando já não tinham mais salvação, lá no norte do Paraná. Mas o importante é que por causa da minha terceira avó e suas netas, as esperas pela minha mãe que demorava para voltar do trabalho eram mais curtas, leves e divertidas. Nem lembro se brigávamos. Pelo clima ontem já passou tempo suficiente para relevar tudo isso. Minha avó postiça nos levava para brincar na casa de quem se tornaria meu namorido anos depois e contava a mãe dele que ficávamos conversando enquanto as minha amiguinhas e futura cunhada corriam pelo apartamento. O namoro durou o quanto tinha que durar, já nos tornamos amigos novamente, mas não conseguíamos lembrar disso, só confiávamos na memória materna mesmo. Minha mãe ter voltado a trabalhar lá pelos meus 6, 7 anos me tornou adepta de acreditar mais em qualidade de tempo junto do que quantidade. Meu pai falava para ela voltar, já que quem só fica em casa dá uma pirada. E eu forçosamente ganhei maior socialização com a vizinhança, que se dependesse da superproteção típica de filha única que recebia, acho que nem rolaria. Na época lembro que era meio metida a desenhista (dizia que trabalharia com o Maurício de Souza da Mônica), mas quem virou designer foi uma das netas de verdade da minha avó de coração. A outra é dona de casa, mas já tem gêmeos! Esses devem dar um baile danado - fiquei meio traumatizada depois de passar uma tarde e começo de noite com uma amiga e sua filha de 3 ou 4 meses para conseguir "almojantar" uma torta de frango muiiiito tempo depois da minha chegada no seu aniversário. Trabalho doméstico e maternal é B.O., diz ela - e eu assino embaixo, pois cheguei exausta depois de só ajudar meio período. Nossa avó estava numa casa de repouso - parece que ela estava com começo de Alzheimer ou o tempo já estava levando boa parte de suas lembranças, pois antes de ir para lá já não recordava de muito que tentávamos dividir com ela. Eu, minha mãe e minha madrinha de Crisma bem que tentamos visitá-la, mas ficou só na intenção mesmo. Grazie a Dio não tenho culpa não. A que vi ontem no caixão não era a "vozinha de açúcar" que me preencheu tantas tardes, com seu misto de amor e cuidados zelosos. Muito se apagou até da minha memória. Tomara que minhas "meias primas" que compartilharam estes bons tempos com ela e comigo tenham guardado mais. Na memória e no coração. Vai com Deus dona Ordália! É o pingo de gente da foto que se despede, não a adulta relapsa de hoje em dia tá?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mais de 30 escolas se unem na caminhada da paz

Meu bairro não tem lixeiras verdes suficientes presas aos postes. Tive que insistir com meu lixinho na mão até encontrar uma. Acessibilidade também não é nosso forte. A calçada de cada casa tem praticamente uma rampa particular para seu carro, o que dificulta até para quem anda bem, image um cadeirante. Mas ele tem há 14 anos a caminhada pela paz do Movimento Sol da Paz, que iniciou depois que a aluna Leonarda saiu à noite da Escola Campos Salles e foi assassinada com tantos tiros no rosto que o diretor de seu colégio não conseguiu olhá-la no caixão e chamou líderes comunitários para começarem este movimento. Sua avó estava presente, de bengala, para apoiar nosso sobe e desce de 4,5 km nas ruas e vielas do Heliópolis, a minha comunidade. Ganhamos girassóis para pendurar nas roupas, além dos símbolos rosa contra o câncer da mama e vermelhinho de conscientização da Aids.

Revi o Brás, diretor do colégio em que fui voluntária por um ano com contação de histórias, pelo Amigos da Escola e também a professora da sala de leitura, que comemorou na época o aumento dos empréstimos de livros. Conversei com a professora de artes e ainda conheci a apostila do município, que tem até a Mafalda do Quino entre as sugestões de aula. Soube das aulas gratuitas de teatro, percussão, capoeira... Descobri caminhando, que os moradores já contam com do in, reflexologia, meditação, academia comunitária, biblioteca... E que a rádio já mudou de endereço, não fica mais tão perto da quadra. Gritei com professores, alunos e moradores um longo grito "de guerra", que entre outras coisas dizia "que a paz nasce com as crianças e cabe aos adultos sustentá-la". Me espantei com a participação do abrigo para moradores em situação de rua Arsenal da Esperança, que veio da Móoca para participar. Conversei com um monge de lá, Marco, italiano, engenheiro de telecomunicações, que estimula o pessoal a não só estudar e conseguir um trabalho, mas a toda semana fazer algo por orfanatos, praças... Em 4 anos, já são 450 trabalhos voluntários, que trazem para eles o sentido maior da existência. Todos com camisas vermelhas que traziam uma espécie de slogan "floresta que cresce", já que "faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que cresce", de acordo com este moço, que documentava tudo para por uma trilha sonora depois. A bandeira deles tinha várias bandeirinhas de diversos países ao redor do pedido Pace (paz). O monge justificava que a paz tinha que ser de todos, ou não seria de ninguém. Vi o pessoal do marketing da Caixa lá, teve cobertura da Bienal (que já levou as crianças para lá e ainda fez com que elas criassem álbuns), do Diário de S.Paulo e se não me engano, do SBT (ao menos tinha um carro deles na Estrada das Lágrimas).  Estava como criança, redescobrindo o bairro depois de 5 anos fora: o Shopping do Real ("aqui seu dinheiro vale mais"!), os moto táxi ("tudo é passageiro... para nós, o passageiro é tudo), o Mec Favela, as ruas da Alegria Popular e Castelo dos Sonhos. As crianças em caixotes transformados em ambulãncias, de touca e máscara médica, pedindo por saúde de qualidade. No finalzinho, revi o professor Israel, que deu tantas caronas para mim e outra amiga da Faculdade Paulista de Artes nos últimos três anos (soube que ela está de volta ao bairro). Claro que fomos todos bebemorar num boteco, que a turminha do Campos Salles já não é mais a mesma, mas continua divertida. Depois ainda contei com a companhia do Isra para carregar meu bilhete único e matar as saudades da Estrada de São João Clímaco (sim, só nós conhecemos este santo, mas e daí?). Ri de um senhor que jurava para nós "nunca entendi porque velho é chato, só quando virei um. Nunca vire velho". Ganhei carona dos pais mais preocupados do que nunca, já que tinha saido cedo de casa e - fazer o que? - sou filha única. Eles bem que tentaram, mas estava bem humorada demais para bater boca. É tão única esta sensação de pertencimento. "A gente pode sair da periferia, mas ela não sai de nós". Nas últimas semanas vi Fernanda Montenegro no teatro, consegui vaga para fazer dança de salão e pilates e ainda assitirei Fábio Assunção. Claro, só podia ser ano de eleição. Mas estamos de olho, passamos a tarde de ontem alertando as pessoas para participarem do quanto o governo arrecada, onde investe, em que aplica. Vimos tantas pessoas nas janelas, nas portas, pondo bandeiras brancas em suas casa e comércios, apoiando ainda que com cartazes simples. É como já comentou Luís Nassif: igualzinho à lenda de Anastácia, que vai buscar longe, mas encontra a felicidade do lado, fui curtir na Vila Mariana a proximidade do Sesc, do metrô e do Parque da Aclimação, mas é nesta quebrada aqui que me sinto em casa.
"O que você faz pela paz"? Titãs
Bem, depois de ouvir uma moça reclamando no ônibus de sete assaltos numa rua do bairro e outra com medo de descer no ponto final porque tem uma "louca esperta" que só joga pedra em criança e mulher, ontem eu plantei minha sementinha. Olha a cobertura de parte da imprensa aí:

Eu e o Bidu também acreditamos que "no coração de quem faz a guerra nascerá uma flor amarela... Como um girassol"... E você?

Nos últimos dois dias teve um Festival da Paz, com vários grupos de crianças apresentando o que prepararam para reivindicá-la. Teve um grupo que fez uma coreografia com a música Brasil do Cazuza. E ainda tem quem ache que o povão só quer ouvir Michel Teló! O carro de som tocou muito ela ontem.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Insônia criativa

Acintosamente você dorme. Devo confessar que invejo a capacidade de quem dá boa noite e já embarca rumo aos delírios idílicos mais criativos. Estava irriquieta demais para conseguir, como você amiga, o merecido e restaurador repouso noturno. Escrevi na agenda, como quem volta à adolescência - por para fora, seja digitalmente ou com a boa e velha caneta é sempre terapêutico. Acabei de ler Fora de Mim, da Martha Medeiros e achei meus finais de relação tão light, bem que minha tia tinha dito, não era romântica como a escritora gaúcha. Brinquei com seus gatos. Mas eles levaram horas para começar a miar e eu tentei adivinhar se reclamavam da falta de areia para o xixi, se queriam comida ou atenção mesmo. Assaltei sua geladeira e encarei uma maçã da Mônica - gozado como não dormir dá fome e a gente não está fazendo cáspita nenhuma! Também devorei o lanche que tinha me oferecido mais cedo e fiz uns dois chás. Baita propaganda enganosa do Doces Sonhos, não consegui nem ressonar meia horinha que fosse. Se tivesse a senha do seu computador, acho que escrevia meus projetos, o livro e a peça que ficam pulando feito macaquinhos no sótão em plena madrugada na minha cabecinha. Muito libertador você morar na Liberdade. E pensar que durante o dia as ruas próximas ficam o próprio inferno, entupidas de carro e gente. Na madruga todos me esnobam com seu sono comprido e profundo. Onde será que foi parar o meu? Podíamos ter uma tomadinha, um botão liga desliga, para fazer os neurônios "darem uma trégua" na marra. Encostei a porta do seu quarto e arrisquei um torpedo para três amigas irriquietas como eu. Uma retornou, com todos os bons conselhos do mundo para quem não se restabeleceu do cansaço do dia e pode fazer estragos em crise criativa insone. Mas os créditos não podiam ser tão generosos e claro, nos deixaram na mão. Testei todas as posições no sofá cama novo da minha anfitriã, claro, sem sucesso e ainda por cima, sozinha. Kama sutra solitário. A noite ia ser longa. Um filme talvez? Sou meio nó cega tecnológica para por em funcionamento sozinha esta "tevezinha" tão digital e high tech. Usei o ursinho de pelúcia que tinha me oferecido como almofada e também experimentei dormir abraçada, embora isso definitivamente não fosse "minha cara". Se desse corda para meu estômago, que fazia o mesmo escândalo daquele leão da MGM no começo dos filmes, acho que acabava com seu estoque de alimentos todinho. Contar carneirinhos? Nada do mundo animal me auxilia a cair nos braços de Morfeu. E seus gatinhos mostrando o quanto têm personalidades opostas: um mostra a barriguinha para ganhar cafuné, a outra, se encolhe, arisca. Seis horas e seu despertador só me lembra o quanto não dormi... Vamos lá, conseguir ingresso para ver Fernanda Montenegro onde agora moro, fim do Ipiranga. Será que você vai comigo em plena quase madrugada? Amiga é para estas horas "dificultosas": não está elétrica como eu, mas "devagar e sempre", se prepara para se estapear por uma entrada no CEU Meninos. A "viagem" também vai ser longa, se o Metrô e a SPTrans escancararem sua ineficácia no transporte público logo cedo. Mas só de ter com quem confidenciar minha exaustão, já é lucro! E "vamos nós" rumo a um dia cheio de coisinhas a por em ordem: comprar creme para o cabelo "black power ruivo" no paraíso da mulherada Ikesaki, resolver pendengas burrocráticas no Banco Santander (virou hispano-brazuca e jogou no lixo a saudisa eficiência do Real...), andar com meu filhote canino Bidu, rir do mestre de paciência meu pai...

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Que psicotrópico que nada! Um busão e estava tudo resolvido!

Via Felicidade. Esta era a indicação do visor do ônibus, em plena avenida Tucuruvi. Num dia em que se acordou meio deprimida, aquela era uma promessa e tanto. Por onde iria esta condução indicando quase o paraíso, santo Deus? Arrancaria de mim esta dor, esta angústia, esta ansiedade "devezemquandária", que surge não sei como e parte sabe-se lá para onde? Seria um sinal divino? Depois de tantas rezas, jejum de quaresma, finalmente uma possibilidade de redenção! O caminho teria que visual? Campo ou mar? Em plena São Paulo, era pouco provável que a bendita condução pública rodasse tanto assim... Passaria pela Cantareira, pelas trilhas feitas com amigos e ex namorados, faria um "pit stop" naquela cachoeira em plena cidade cinza, dos prédios e congestionamentos? Quem teria a bênção de morar num lugar cujo trajeto fosse feito "Via Felicidade"? Lembra do e-mail da quase irmã, em estado de espírito semelhante, que confessava "fia, só faço chorar". Tinha que avisá-la desta possível melhora de todos os males da alma, nada de remédios, psicólogos, psiquiatras que dão ao frequentador a indigesta fama de "quase maluco", tratamentos alternativos que funcionam num e dão cócegas no outro... Apenas uma passagem do Bilhete Único municipal e embarcamos no sonhado "Via Felicidade". Ensaiou pegar o celular para brincar com ela. Brochou como se isso fosse possível em seu sexo, "sensibilissimante" feminino. Quando tentou carregar o aparelho mais cedo no supermercado, o sistema da operadora estava fora do ar. Não era dia de dividir descobertas poéticas em plena zona norte com ninguém mesmo. Tinha até recebido mensagens e - incrível - não eram apenas da mãe, sempre conectada além do normal devido à sua "filhauniquice".
O farol já tinha aberto e fechado incontáveis vezes. O relógio do seu celular lembrou o compromisso marcado com a outra amiga da região, que terminava um curso de massagem e a usava adoravelmente como "cobaia". Para não perder o costume em plena megalópole, estava atrasada. O metrô tinha resolvido fazer uma verdadeira "via sacra" da zona sul até a estação terminal, devido aos problemas "na estação Paraíso" - que tinha este nome por pura ironia, vivia "cutucando a gastrite" de tudo que é passageiro, se o inferno fosse uma versão piorada, aquele certamente seria o umbral, como explicam os conhecidos espíritas.
Não era nesta tarde pasmacenta que pegaria o ônibus para conhecer o trajeto "Via Felicidade". Agora parece que ele já indicava "Jd Floradas da Serra", mas tinha que desconfiar de seu misto de miopia com astigmatismo. O toque da futura massoterapeuta, mesmo ainda estudando, também era uma promessa de que a felicidade existia. Atravesso as ruas e avenidas meio no piloto automático, ainda curiosa com o destino daquela condução pública. Já na amiga, tagarela demais para uma sessão de massagem, lembra que a maioria dos bairros e ruas com nomes promissores levavam aos cantos menos apresentáveis da cidade.
Naquele dia não foram os toques providenciais, nos lugares mais estratégicos em que a tensão que resguarda de partir do corpo, que me reconduziram de volta ao eixo, de que tudo estava bem e nem era preciso conhecer o trajeto do ônibus "Via Felicidade" para tanto. Rolar no chão com o filhote dela, que foi registrando tudo via "camerazinha de quinta categoria" do celular, já tinha sido capaz de dar indícios de como retomar o rumo "Via Felicidade". Outra amiga, mãezona coruja assumidíssima, jurava de pé junto que só os filhos provocavam ondas de felicidade nos pais, que mais nada era capaz de gerar. Que sorte a sua! Qualquer criança que não precisasse de noções básicas de reeducação negadas na pré infância eram capazes de fazer o mesmo com ela, ainda a léguas de distância de ajudar a "super povoar o mundo".
Não reencontrou o ônibus "Via Felicidade" de volta ao metrô, a caminho de rever outra amiga para encerrar com chave de ouro as pistas de como chegar lá, matando as saudades do centro budista em que também saía de alma lavada, acreditando que ser feliz era viável e nem precisava usar seu Bilhete Único para tanto, se perdendo numa região em que mal conhece e desconfiava ser longe do metrô - justo ela, uma caipira metroviária do ABC, que quase só topa programas perto das estações.  Síndrome da pedestre convicta, é verdade, vulgo pobre com roupagem mais ecológica.
Um pouco mais difícil desvendar o caminho para a tal felicidade nesta religiosidade, é verdade. Indicada para "cabeçóides" como ela, que curtiam fundir os miolos para entender uma das mais impenetráveis filosofias que já tinha entrado em contato. Quer dizer, nesta altura do campeonato, tentando aplicar na própria vida, já estava mais para religião, segundo a quase xará Soninha Francine. Adorava "por os miolos para fazer hora extra" naquela salinha coloridíssima, onde namorava sua futura tatuagem: o nó infinito em meio a uma flor de lótus estilizada. Sabia que compraria brigas familiares suficientes para ficar bem longe da sonhada felicidade com o desenho permanente no corpo. Mas deixava a ideia amadurecer, enquanto o medo da dor e a falta de grana não contribuíssem. Tinha esquecido completamente de perguntar sobre o tal ônibus para os únicos moradores que conhecia por lá, a amiga com dedos de fada e o marido músico, para o qual prometia aprender a cantar quando o "programa Pau nos Custos" chegasse ao fim. Melhor fantasiar que a condução pública passava por todos os recantos da zona norte. E dormir recitando mantra, que é para contribuir para chegar mais rápido à sonhada e fugaz felicidade.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Onde você esteve toda minha vida?

O trabalho, imprevisivelmente, acabara antes do imaginado. A chefe havia deixado a passagem de volta em aberto, se não estivesse “sobrando um resto de mês no fim do salário” poderia conhecer a cidade, idílica à altura de sua fama. Olhou o celular, o sinal caía e voltava, num roaming de quinta categoria. E para quem já estava apertada, melhor não arriscar aumentar a conta de telefone.  Usou a verba de viagem da empresa e comprou um cartão telefônico. Ligou para casa.
- Terminou?
- Tudo acabado. E a praia só rindo para mim, raiva da falta de grana!
- Olha, vai naquele albergue da juventude que a vizinha falou. Entrou um trabalho a mais, põe no cartão que mês que vem te dou.
Resolveu aproveitar a generosidade marital e passar um fim de semana colocando a cabeça num estado mais relaxado. O albergue foi uma ótima maneira de “sair do País ficando nele”: tinha mais gringo do que qualquer outra coisa. Passou uma manhã e tarde de sábados muito bem sozinha obrigada: caminhou na beira d´água, tomou água de coco, comeu peixe, deixou as coisas no quiosque, deu um mergulho. Cochilou na rede da va randa do quarto em que estava meio à toa, quando a holandesa do seu quarto chamou para ouvir o trio que fazia uma espécie de happy hour no restaurante em que todos cozinhavam.
A música era boa, bem praiana, gingado meio malandro, a cara do local. Até que seu olhar bateu de frente com o de um gringo que ainda não tinham apresentado. Bateu e ficou. Seus poros meio histéricos é que sopravam: “ele não é daqui”, pois as feições eram bem regionais. Ele também não se fez de rogado e o olhar ficou ali, meio que reencontrando o seu propositalmente. A música? Tinha alguma coisa tocando? Começou a ouvir o coração, nem devagar e nem disparado, mas presente e dando outro gosto à boca, que obrigava a lamber os próprios lábios periódica e rapidamente. As outras pessoas ficaram meio que embotadas, como quando desfocamos o segundo plano de propósito nas fotografias. Ele começou a se aproximar. Parecia que vinha em câmera lenta e qualquer vestígio de pressa tinha evaporado: tinha ganho todo o tempo do mundo de repente.
Quando ele chegou. E tocou o braço dela. Aí é que não viu mais nada em volta mesmo. Sentiu uma familiaridade inexplicável. Era como um novo antigo amigo. O cheiro dele era meio amadeirado e não parecia perfume. Era alemão, embora tivesse descendência turca e todos os traços exóticos de sua ancestralidade. Cabelo comprido, negro como os olhos, a barba e as sobrancelhas. A pele tinha o tom de um moreno meio madeira, que ele parecia exalar. E devia ser mesmo algum reencontro quase ancestral: foi a noite inteira de conversa: política, ideologicamente esquerdistas, os dois, literatura, apaixonados por poesia ambos, música, fãs dos sons de todos os povos, meio cidadãos do mundo nas notas musicais.
Até que ele citou Rainer Maria Rilke como um autor favorito e começaram a completar frases favoritas de suas referências em comum. O papo foi para a beira da praia, próxima ao albergue e enveredou por uma caminhada molhando os pés e rindo de tantas coincidêndias em comum. Até que não saberiam dizer quem, onde, que horas, por qual razão, como... Se esbarraram mais desavisadamente. E riram de um modo mais solto. Se olharam de maneira mais urgente. E não encontraram outras semelhanças para trocar naquele instante. Se embebedaram de seus olhares durante horas, numa inconsciência de que aquilo não se repetiria nunca mais. E se tocaram. Olharam para suas mãos ainda meio surpresos. E se aconchegaram, mas quase ainda ariscos. Estavam longe de onde tinham se conhecido. Não devia ser mais a mesma praia, pois era mais deserta e silenciosa. E ali, ela descobriu que é possível fazer amor numa única noite. E ali, ele saberia que cada impressão dela marcaria sua pele a fogo quase como tentativa de domar boi bravo.
Voltaram também a pé com a mesma falta de urgência de quando se conheceram. Ela achou que ele tinha um gosto doce, do outro lado do oceano. Ele sentiu sua pele meio gosto de mar. Viram o sol nascer e carregaram os sapatos nas mãos. Voltaram para a infância chutando água um no outro. Pararam para tomar café num quiosque qualquer. Se esqueceram olhando as ondas. E caminharam mais um pouco. Já sem brincar com a água. Se tocaram com uma febre de temor da perda. Mergulharam. E se beberam. Criaram um abraço próprio de quem antevê caminhos diametralmente opostos. E comeram peixe. E voltaram num ritmo tão tranquilo, de quem não quer que o dia acabe. Foi um dia de silêncios preenchidos.
Até chegarem no albergue, fim da tarde. E a holandesa chegou esbaforida avisando da ligação do marido. Percebeu que ela e o alemão não sabiam nem o que tinha nascido e já tinha que ser morto e se afastou.
- Você não disse que...
-Você não vai acreditar, mas esqueci.
- Vocês estão...em crise?
- Não parecíamos.
- Eu tenho uma filha.
- Você também não...
-Mas não sou casado.
- De qualquer forma...
- Não nos prometemos nada.
-E poderíamos?
-Não consigo ficar longe dela.
-Também tenho uma história antiga quase indissolúvel.
- Isso já tinha...?
- Nunca.
- Você parte...
- Amanhã. E você volta...
- Depois de amanhã.
- E agora nós...
Os dois se olharam um sem fim meio quietos, meio mareados, meio sufocados, meio querendo parar o tempo, entender os caminhos que se enveredam e têm que se desvencilhar, lembrando cada palmo de toque, cada lambida de urgência, cada abraço de resvalar no juízo, se vendo como quem quer marcar tudo em tinta interior indelével, com gosto de choro na boca e olhar querendo marear, de respiração meio suspensa e entrecortada.
Se abraçaram. Um aperto de consolidação do que foi e não será, do que não pode e aconteceu, do que não se esperou e viveu, do que surpreendeu e deslocou tudo, do que se permitiu e se reverenciou, do que despertou e desembotou, do que ampliou e remexeu, do que virou do avesso e suspendeu as horas, do que remodelou o ritmo e virou de ponta cabeça, do que ofuscou e sacudiu a poeira, do que apagou o ontem e recriou o agora. E chorararam. Ainda não sabiam se de saudade antecipada, de revolta, de dor entrecortada ou anunciação do fim inevitável de dois mundos inconciliáveis.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Nas ladeiras de Olinda

Aquele som invadia peito adentro e ditava o compasso do coração. Se sentia mais brasileira que nunca. Desconfiava não ter gingado até por os pés em Olinda, naquele Carnaval de molhar os olhos e a alma. O ritmo veio ao encontro dos seus pés, do seu corpo como criança que corre para o pai, mais natural que o encontro das águas.
Com os bonecos voltava à infância, arregalava os olhos e quase queria correr quando eles passavam, tinha vontade de bater foto de um por um. Estava pior que turista japonês. O que quebrou a magia do seu primeiro Carnaval em Olinda eram os puxões de orelha do namorido meio garoto enxaqueca, nada fã destas brasilidades carnavalescas:
- Outro clique? Estes bonecos são todos iguais.
Não eram. Aquele Carnaval tinha um quê daqueles que a avó, a mãe contavam, uma tentativa de reter em algum detalhe a inocência quase perdida desta tradicional e importante festa pagã, um alegrar-se à toa, um entregar-se graciosamente à serpentina.
Deixou a máquina meio esquecida pendurada à fantasia para ver o bloco passar e com ele se encantar, como quem se desvirgina de Carnaval Pernambucano. Ouvia um trecho de nada, o coração gravava e já saía cantando.
Soltaram as mãos por uma fração de segundo e ele surgiu. O cara que fez a trilha sonora mudar, a passagem do bloco se tornar mais lenta, a briga com o namorido menos chata, o calor mais tolerável. O momento meio curta metragem, fora do tempo espaço. Os olhares se interceptaram como policiais que fazem vistoria desconfiados.
Ele veio roubar um beijo. E que beijo! Esqueceu câmera, bonecos, suor, bolha nos pés, sede, ritmo batendo forte dentro do peito, fantasia desmontando com o calor, fome, aperto no meio do bloco...
E namorido.
- Ei! - ouviu dele, de volta à realidade e tomou uma sacudida.
O corte foi brusco e o pernambucano de sonho tratou de sumir na multidão.
Era mais um agonizar de um amor que vivia em convulsão. Talvez por isso o namorido facilitou a perda dos caros acessórios fotográficos.
Mas também era um provocar de revoada de borboletas apaixonadas no estômago. E uma bem vinda confirmação de que estava mais viva que nunca.