Saio da farmácia e quando entro no metrô, sou surpreendida pelo telefonema da irmã que Deus não deu, mas a vida concedeu, preocupada com meu destino e aconselhando no celular:
-Vai dormir na sua amiga. Decretaram toque de recolher no Heliópolis e não sai mais ônibus nenhum do Terminal Sacomã desde as 19h30.
Bem que eu e o professor de história desconfiamos que a mensagem não tinha sido compreendida ao término da 14ª Caminhada pela Paz, ao ver os alunos da capoeira praticando golpes tão efusivos depois de andar a tarde toda, 4,5 km pela comunidade com a mensagem do bairro que queríamos para nós.
Queríamos. O editor de vídeo favorito da minha vida tem razão: este tempo verbal indica ilusão. Ou como respondeu um cineasta espanhol quando questionado por um estudante: “a utopia serve para nos fazer caminhar”. Sintonizo tudo que é rádio pelo celular, mas a Voz do Brasil impera com suas notícias nacionais. Eles defenderam a manutenção do programa neste horário há poucos dias – mas a necessidade de novidades locais deveria vir na frente, que já estamos fartos das imposições federais.
Como é decretado um toque de recolher? Sim, pois a comunicação não é tão eficiente quanto nos rádios internos do metrô, a ponto de auto falantes reverberarem a preocupante imposição: “não entrem nem saiam de suas casas, comércios ou escolas: as ‘quebradas’ da comunidade agora são nossas”.
Os chefes do tráfico não mandam release. “Chefões da máfia regional decidem mandar o bairro parar às sete da noite”. Não. Provavelmente um zum zum zum, digno de rádio pião fabril, “esparrama” o apavorante alerta: a movimentação pelo bairro está congelada. Mais que isso, proibida. Quem decide quem entra e quem sai são eles. Depois de 14 anos de caminhadas pedindo paz na região, o que conseguimos? Nos espantar constatando que somos reféns desta ordem surda, enquanto lemos no dia seguinte no jornal gratuito que o governador afirma: “incêndios de ônibus e mortes de policiais são episódios ações isoladas”. Isoladas dele, em seu castelo de faz de conta do Morumbi. Para a maior favela de São Paulo – sim, estamos próximos dela e de seus tantos programas comunitários, agora já sem tanto orgulho, isolados estamos nós.
Alguns em casas de amigos. Outros presos no terminal de ônibus, perdidos feito baratas tontas: fugir para um parente? Tentar uma rota alternativa? Proibidos de voltar para casa. Casa? Já não é mais nossa. O direito de ir e vir é letra morta. Ninguém nos salvará do risco de bala perdida nos acertos de contas entre policiais e bandidos. Do medo de seu ônibus ser o próximo alvo. Não por acaso tinha ouvido moradores dos bairros próximos das regiões da Anchieta reclamarem destes perigos no metrô, ontem ou anteontem.
A parte que lhe cabe neste latifúndio é rezar. Ou melhor, lembrar em quem votou nas últimas eleições e fazer diferente. Um pouco desta várzea urbana está sendo colhido por alguma irresponsabilidade ou distração que a maioria plantou. A inconformidade é de quem não conduziu de volta ao poder estes governantes “blasé”, que não tem nem uma declaração sobre as baixarias de ontem no jornal. A TV, ligadinha no maior canal do País no café em que me refugiei com uma amiga, também não colocou no ar nenhum plantão alarmante. Tudo azul no céu de brigadeiro da mídia. Enquanto somos impedidos de voltar para nossas casas, a casa não cai para eles. Por enquanto, pois o poder rasteiro dos traficantes sem propaganda da periferia de São Paulo está afiando suas garras. Se continuarmos assim, qualquer dia acordaremos no Complexo do Alemão.
Querida, curti o texto, embora já esteja saturada desses relatos sobre caos urbano e afins, que não têm, parece, como escapar da óbvia "mensagem" sobre cada povo ter o governo que merece e especulações sobre até quando faremos por merecer essa avacalhação toda...
ResponderExcluirEnfim...
Por isso, quase desisti de ler o texto no meio...
Voltando a ele, gosto de quando você coloca uma "lupa" nas situações particulares que são vivenciadas em meio a esse caos. Beijo