Natal é quando confirmo meu talento jornalista barraqueira:
qual será a revelação bombástica desta vez? Quem se pegará pelos cabelos? Qual
o presente disputado até a morte no amigo secreto ladrão? Algum filho de primo descobrirá
a farsa do tio caricato travestido em Papai Noel dos trópicos?
Nesta reunião do desperdício gastronômico suspendo minha
irreversível atuação como mãe dos meus pais. Antes de conciliar vinho e remédio
para hipertensão, fazemos sinal da cruz na taça do pai e seja o que Deus
quiser! Faço vista grossa para o diabético mergulhando no manjar gourmet da tia
que faria bonito no MasterChef. Também não implico com o sedentarismo “mulher é
que é Amélia de verdade!” da mãe.
Todo ano prometemos não cozinhar o suficiente para receber
metade dos refugiados da Síria, mas sempre sobra para que todos saiam de
marmita a tiracolo. Sou a única que emagrece nas festas sem comer carne. A
parentada também se reveza na criação de novas caretas para meus pratos
naturebas.
Mas nem tudo é Comédia
da Vida Privada na noite das músicas melancólicas de Simone. Devo contar
umas histórias aos sobrinhos curiosos. Ajudar a irmã dele a fazer fotos no
celular dum primo tomado generosamente pelo espírito de compartilhamento deste
fim de ano. Faremos escambos de vestidos entre primas. Nos revezaremos na
maquiagem coletiva. Pode ser que um novo talento musical se revele no especial
do Roberto. E já que este ano teria resposta para as cobranças lugar comum de
sempre, deveria levar plaquinha inspirada na Herbalife “casei! Pergunte-me
quando”!
Uma tia meticulosa fará decorações artesanais que tomarão a
semana de férias em trabalhos demoradíssimos. Outro tio com talento para
pinguço criará nova versão de ponche tupiniquim. O sobrinho que lembra como o
tempo passa rápido ensinará vexatoriamente, mais uma vez, alguma função escondida
no celular mil e uma utilidades. Os pais – demos graças ao Senhor! – não
enfiarão uma faca no pescoço para cobrar pelo concurso do qual fugi quase vinte
anos. Servidora da educação com alto potencial para pânico ou voz minguante,
pois não? Era o que tinha para tomar posse na virada de profissão da meia idade
e se reclamar, tem mais troca de área antes da minha aposentadoria.
Quando todos estiverem suficientemente alcoolizados para
apoios literários intra familiares, sacarei a nova publicação desta temporada e
o velho mote de sempre “podia estar roubando, podia estar matando, mas só estou
pedindo que compre meu novo livro”. O potencial de arrecadação para os jantares
da excursão da virada é significativo.
Depois da meia noite todos agregados surgem com lembrancinhas,
alguma pinga ou pernil, no revezamento “feliz Natal itinerante para todas
famílias”. A tia com o melhor pacote de TV por assinatura deve pedir que a
deixem ver uma série ou especial repaginado na HBO ou GNT. Um quarto de hora
adiante deve emergir saudades dos avós ou de algum agregado com família contra
mão demais para chegar a tempo de comer o resto do chester.
Não devo escapar do questionamento a respeito do aumento da
família. Cáspita! Alguma perguntinha inconveniente devia ficar mesmo descoberta.
Justificarei que a nova gata quer exclusividade de território em casa ou que
três não são compatíveis com o ímpeto motoqueiro do casal. Devia dizer Virada no Jiraia que perdi o timing de
usar meu lado lúdico domesticamente. Divirto aí o filho alheio. Mais econômico
e menos cansativo.
Sentirei falta do violão do tio, cuja pressão baixa tem dado
sono no precursor dos artistas familiares cada vez mais cedo. Os primos do
teatro chegarão ainda com figurino de gnomo da última ação natalina em
shopping. Os parentes do outro estado ligam mais ou menos quando a cerveja
esquenta. Tios mais desgostosos de ter saído do amigo secreto ladrão com
camisolas proverão o troca-troca das lembranças, enquanto as mães oferecem mais
pudins.
É praticamente um roteiro de Porta dos Fundos, mas por aqui
também nos esparramamos em colos saudosos, pedimos massagem nos pés e agarramos
os pequenos dos primos mais ágeis na exploração dos nossos instintos paternais.
De sete a oito meses de percalços trabalhísticos e amorosos devem ser postos em
dia entre a primaiada. Uma madrinha
ou pai me farão trocar os brincos ou mudar a fragância usada atrás da orelha
com demonstrações súbitas de generosidade. Meia dúzia de amigos escreverá via
Face ou enviará artes de boas festas pelo zap. Amigas das tias de longa data
chegarão com cachorro, peru ou sorvete. Havia a opção de fazer test drive de
Natal na sogra, mas em se tratando de festa familiar, melhor assegurar as
risadas altas, exageros de sempre, discussões relâmpago e esquecimentos a jato
aos quais nos habituamos há décadas. No script em que já temos papel cativo
sempre abrem-se espaços para demonstrações efusivas de afetividade súbita. E
nesta altura do campeonato, apesar das expectativas pelas últimas novidades, já
não há revelações tão surpreendentes. Em se tratando de Natal, a acomodação ao
amor quase italiano familiar é aceitável. Até incentivada.
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