sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O divã da amônia

Nós nos conhecemos nos apertos de "Casseta Mercantil". Os salários não saíam e quando ele tinha que arrumar nossos cabelos, praticamente "lavava louça" em nossos couros cabeludos. Até hoje enrolo para retocar minha "ruivice estado de espírito", pela aflição de desembaraçarem a "casinha de sapê" a seco, sem creme. Mas tenho "porcelana de queixa" que tudo machuca e não "casca de mulata" resistente até a gilete enferrujada como minha prima irmã. Cada mergulho naquela mistura de tintas é sempre terapêutico, só que eu esqueço por ter dificuldade de ser 100% mulherzinha: arrumo o cabelo, descascam as unhas, faço o pé, a depilação já venceu. Não acompanho a necessidade em tempo real de manutenção com esta agenda digna de Duracell: oficina, capoeira, peça de amigo, aula de dança. Só quando percebo que estou "brincando de abóbora do Dia das Bruxas" é que agendo retoque e volto correndo. Devo ser daltônica igual o "sarrista inveterado que e gerou".
Pintar cabelo é uma alquimia à altura de cozinhar. Ele é praticamente um mago dos pincéis. Já nem digo mais "não quero ruiva 'quenga', nem escancaradamente pintei ou ponto de referência". Relaxo. O quanto minha alergia permite, pois basta que ele se recolha à "bat caverna" das caixinhas coloridas, faça o mix do ruivo, com acaju e louro escuro ou coisa que o valha e volte de tigelinha na mão, pronto para a renovação que você precisa e ele já detectou pela ironia com que pisei no salão. E eu me rendo: à coceira do couro cabeludo, ao sarcasmo imperdível dele, a todas as vezes em que ele puxa meu tapete, pois precisava de novo me sentir com os "pés no ar" e ele percebe, pois não é só o técnico que alterna a tesoura, com o desenhar de uma sobrancelha e redesenhar um rosto, é o terapeuta de coração, que rebate sua revolta descabida com a terapia "da libertação pela risada". É a quem entrego a moldura do meu rosto, mas só depois de besuntada até pintar a testa mostro a foto que fiz da farmacêutica e confesso que era aquela cor que queria, mas sabia que seria impossível, pois ela é "original de fábrica". É ele quem sempre aconselha "não tenha juízo e se tiver, não use". É graças a ele que confiro no espelho depois e estou sim, no tom que queria, com o qual ouço "não acredito que não é seu, jurei que era".
Ele não medita - até onde eu saiba - pelo menos não disciplinadamente, mas quando se municia de seus pincéis, fica completamente entregue à arte de nos devolver à nossa personalidade descoberta ao longo da vida, já que foi ele que me ensinou que cor dos fios e perfume nos personificam. Acho que com ele comecei a aprimorar a fina arte "de rir da minha própria desgraça", quando o que nos era devido não era pago, ele pesava a mão na maquiagem e eu entrava no ar com as marcas de nossa indignação pela penitência paga naquela várzea trabalhista em que nos conhecemos.
Com ele, me aprofundei no histórico das prisões trabalhistas televisivas brasileiras e o calote que cada uma imprimiu na história de superação dele. Sentada na sua praticamente "taberna de mago", pude viajar pelos quatro cantos do mundo em que ele preparou atores para entrar em cena e não ouso contrariar quando ele brinca "tudo louco", pois tenho menos tempo de estrada que ele para argumentar. Me ressinto que quando virar as costas ele falará o mesmo da minha porção atriz, mas me justifica que sou desequilibrada, o que é diferente "louco rasga dinheiro (talvez o que não o pagaram) você é 'talvez, quem sabe, apesar, contudo, todavia, quiçá'".
É no recanto do meu mago terapêutico que relaxo ao ponto de me permitir ler fofoca descompromissadamente, de escutar comentário ácido sabendo que é o momento da "terapia do espelho", em que precisamos ter olhos para ver a necessidade coletiva de processar nossos demônios analisando o pecado alheio. Mulher não é fofoqueira "de carteirinha", mas "psicóloga por instinto": tem que entender a escorregada de quem conhece para marcar a fogo em si mesma o caminho de não vivenciar a dor de quem do outro. Assim como muitas rodas de homem "desestressam" da pressão cotidiana debatendo futebol, bancando o gourmet da cerveja ou discutindo nossas curvas, relaxamos de ser mãe, profissional, esposa, mulher, filha, vizinha e amiga, nos entregando aos dedos mágicos de quem nasceu para pintar um quadro em nosso rosto, mas começou treinando no seu mesmo e descobriu domesticamente como improvisar visual displicente ou atenuar cara blasê sem expressão. E com ele descubro que a questão não é fazer o que se ama, mas amar o que se faz, pois ele estudou para cabeleireiro por ter ganho um curso, mas sempre teve e ainda tem nojo de cabelo - só que faz de nós as estrelas da telinha e do palco que ele preparou tantos anos atrás.
Como ele ganho dicas prosaicas: "o que disfarça olheira é creme para hemorróida", levanto declarações bombásticas "já colei cílios postiço com super bonder", relembro a verdade fugidia "vocês tem que ser felizes por vocês, independente de casar, quem já teve marido viu que não é tudo isso", descubro "que pele negra e morena têm mais tendência à alergia ou quelóide, uma vez quase 'empacotei' um músico do Roberto Carlos para que a luz do palco não refletisse tanto no grisalho dele" e recebo insight digno de mestre espiritual "depois que perdi meu pai e minha mãe, nada mais é importante".
Do interior ele veio, varrido por preconceitos provincianos e ao meio do mato ele voltou dando a volta por cima, já escolado, tarimbado, reconhecido, como é de praxe naqueles em que ser guerreiro é o caminho natural, recebendo o tratamento oposto ao de anos atrás, quando ainda não tinha se descoberto o batalhador dos pincéis e tesouras.
Com ele ri dos bastidores de TV, quando maquiou uma colega em comum e o apresentador quis fazer merchan: "o Jaques Janine que te deixou linda", mas ela corrigiu "não, foi o Nino". Noutra entrada, mais uma escorregada no abacate do especialista em alfinetar daquele canal "só pode ter sido esse o cabeleireiro de vocês que errou no seu visual hoje" e ela "não, foi o Jaques Janine".
Conhece como ninguém a alma instável da mulher, que o procura "de vez em sempre" após um fim de namoro, casamento, noivado, para mudar completamente a cor, o corte... Mas ele não repagina ninguém nessa hora: "daqui a pouco você volta com ele e retorna arrependida".  Também cortou os "encaixes", que "a exceção não pode virar a regra ou deixar ninguém desacostumado" e corrigir erro dos outros está fora de questão "nunca fica como a pessoa quer, mas o culpado é sempre quem tentou melhorar o que não deu certo".
Lá a gente come soja, que ele está de olho na alimentação há anos por conta da diabetes. Também por causa dela está difícil de melhorar um machucado na perna depois de arrumar briga com os "nóia" do bairro - acho que ele aprendeu a ser barraqueiro com os "jornaloucos" que atende, que geralmente "têm um palanque na garganta" e não perdem a chance de rodar a baiana.
Ele tem o nome do meu pai, com quem também tenho uma relação passionalmente exaltada. E ao contrário dele, gosta que o significado seja bento. E abençoado seja o melhor presente atrasado que poderia dar neste Natal e pré virada de Ano Novo: minha literatura. Mago, sei que isso não será garantia de felicidade, mas queria casar de novo só para você me maquiar, que essa sua mágica dos pós e sombras ainda não tive o privilégio, mas terei. E será numa bênção (como seu nome), que para combinar com a "casa nova inacreditavelmente familiar que voltei", precisa ser budista. Muitos preparados de pós, cores, reinvenção dos cabelos, remodelar das sobrancelhas, temperadinhos com viagens, amor, paz de espirito, saúde, proteção e abundância no ano que chega. É que melhorar o que foi criado e não combina com a gente também é brincar de Deus. Que do seu salão saí curada de muitas dores corporativas e amorosas. Evoé!

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Nessa ceia, uma terapia

Minha família sabia exatamente o que precisava neste Natal. O meu pai "pé no peito" falou que meu vestido estava especial. Oi?! Reclamei com minhas tias que o kibe de forno, depois de virar a cozinha do avesso, não tinha dado certo, que comia cada delícia nos bazares veganos, demorei cem anos para arriscar levar algo meu na ceia, mas ele desandou e uma delas disse que o que valia era a intenção. Cheguei com a maior cara lavada na festa, mas minha comadre deu um trato com suas habilidades de maquiadora, que "vamos combinar"? Aprovaram a produção depois. A campanha contra a minha "pegada natureba" continua. Mas dessa vez tinha uma meia dúzia de pratos para eu não me sentir colocada para escanteio na ceia. Não rolou o tradicional amigo secreto ladrão. Mas o divertido foi presentear só as crianças e vê-las atirando os perigosos dardos de plástico pela casa afora e agarrando cães de pelúcia. Rolou uma nostalgia das épocas de abundância de presentes em nossa infância, mas "passou, foi só um sonho". Meus pais puxaram o carro cedo. Mas ganhei um colchão em pleno quartinho da minha saudosa avó para esticar a balada doméstica - uma bênção para meus ouvidos, pois tenho tias que dão boa noite e já emendam no ronco. Ganhei uma camisolinha bonita e confortável - um milagre em se tratando de artigos para mulheres. Senti falta da prima postiça - que nós também nos apegamos aos agregados que vêm e vão da família - mas na visita ao nosso presente de Natal, o Pedroca, que chegou praticamente "anteontem" me toquei que os homens e as mulheres têm brincadeiras iguais para maquiar as mesmas chateações colocadas no fundo das prateleiras. Pelo segundo evento familiar consecutivo, o priminho antissocial me abraçou, beijou: é um presente e tanto em se tratando de um "escorpianinho" típico. Conhecemos o novo membro da família e esperamos não tê-lo assustado com o quanto somos emotivos exaltados. As fotos da prima que descambou para a Austrália alimentam sonhos velhos de guerra. Compartilho com minha comadre a mesma indignação e vontade de melhorar nosso ensino. Minha tia me deu um banho de creme e trança que foram uma quase reconciliação, depois de passar a infância reclamando que minha mãe cortava meu cabelo "Joãozinho". Fomos num comboio assustador visitar o novo membro da família, que nem se abalou com o quanto um pede silêncio e o outro emenda numa piada em alto e bom som. Fiz o banco do carro da minha tia de divã na carona de volta. E o presente natalino foi intangível: fazer a priminha que parece com o tio dormir, embaixo da fralda que era para ela não se distrair, ouvir o tio dizer que ela tinha adorado o colo e o pai brincar que não podia raptá-la, pois a mãe teria dificuldade de comprovar que era dela, com a cor da pequena parecendo mais comigo do que com a "mulatice" da mamma. E assim, alternando dias auge da montanha russa com os corta pulsos, nenhuma pergunta ou comentário "cutuca gastrite". Eles mais que mereciam o conto que produzi aos 45 do segundo tempo e li depois do almoço neste feriado. Me revezando nas interrupções deles, que mostram de onde vem minha dispersão. Como passar o Natal longe dos "loucos mansos" do meu coração?

domingo, 23 de dezembro de 2012

Estrela cheia a baião

Essa semana a esperança saiu do coma induzido. E deu um respiro. Enigmático, mas assoprou que a vida é um segredo de Deus sussurrado numa noite de chuva. Então só chegam pistas. Que a jornada é para ser descoberta, desvendada, desvelada. Como abrir o doce feito e embrulhado a mão. E o mesmo mestre de sempre, a mesma voz de outrora, descortinou o estudado, mas esquecido "é um sonho, ainda que em vigília". E então a gente sorri para ele. Percebe que está caindo, mas se liberta pela risada. Olha a areia do apego escorrendo pelos dedos, tudo absolutamente diferente do que enfiaram na sua cabeça que tinha que ser. Mas brincamos de senhor da dança. Reencontramos a pessoa amada, nove meses depois e ela nasceu de novo, magra, radiante, transformada, entendiada. Com prosa para um dia de riso, choro e macarrão improvisado. E a gente revê as tias, arreganha o coração, se diverte e se emociona. Ouve para falar baixo e em seguida vem quase um grito de euforia. Que saímos da barriga e já nos contradizemos. E corre para dançar, crente que não vai chegar, a amiga faz o milagre da multiplicação dos ingressos e a gente arrasta pé. E convida para dançar e nem pisa no pé, ouve que é dançarina profissional e sua a alergia, se sente em Exu, no Nordeste, quase no meio do filme do Gonzaga. E o baião arrepia os poros e salta as veias e a gente rodopia, que somos "auto divertidos" como na comuna do falecido Orkut velho de guerra. E ganha vinho e chama Dionísio para a pista e prende o cabelo, faz Maria Chiquinha, volta para a infância. E dança. Apaixona pelo brinco da amiga, agradece a sandália franciscana - uma pechincha - ela escorrega, mas no embalo do Trio Virgulino, só dança. Sozinha e acompanhada, de olhos abertos e fechados, como se tivesse plateia e como se ninguém estivesse vendo. Termina o show de sorriso largo, coraçãozinho apertado, ai que lombriga de São João! Se esparrama pelo almofadão do Sesc, fala de política, trabalho, amor, espiritualidade. Os funcionários nos tocam, têm que descansar, é verdade! Minha mana chama pra virada em São Tomé das Letras, ah que pena, a verba não esticou tanto assim. E o baião ainda está em mim. Volto para casa procurando estrela. E tentando adivinhar como o nome desse blog "que cheiro ela tem"? De mar, de praia, de terra vermelha paranaense molhada, de fertilidade encharcada, de barro esculpido, de teatro vivido, de criação literária, de paixão bandida, de vida escondida, de mistério dos astros. De Deus sorrateiro, no nosso encalço. De sonho renascido, remodelado, "encordoado", de batalha ainda não terminada, de terra encharcada, de saudade indefinida, de reencontro quase mágico, de sonho a quatro mãos, de verdade virtual, de que vontade dum mapa astral!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Até a exaustão

Vou escrever até morrer
até que consiga te entender
Até tudo fazer sentido
até que não corra mais perigo
até abortar isso que não tem nome
mas me deixa com uma fome
até lembrar o caminho que me trouxe até aqui
até tirar esse incômodo dali
até purgar esse lastro
até não deixar mais rastro
até lavar de mim essa cor
até não sobrar mais nenhuma dor
até não lembrar mais teu cheiro
até te esquecer por inteiro
até entender
que só sofro para te escrever
até que isso tenha fim
até te purgar de mim
até extirpar essa história
até embotar tua memória
até te fazer sumir do mapa
até pular essa etapa
até a exaustão
(esquece, não vou rimar com coração)
até minha interna reacomodação
até admitir meu exagero
não achar mais nenhum desespero
até rir de mim
e achar bonito esse fim

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

E a família aumenta

Este ano você é nosso presente de Natal Pedro. Queria fotografar e filmar, não deixo de ser jornalista nem na hora da sua chegada. Mas essa cobertura é exclusiva da máfia do hospital. E do jeito que estou nervosa, sabe-se lá se conseguiria segurar a câmera. Não consegui te sentir. Mas também sua mãe sempre tem uma reunião do partido, uma passeata, um protesto. Eu ironizo mas tenho o maior orgulho dela, que diz ter tido influência das tirinhas da Mafalda e do quanto eu falava de política com ela, por causa do meu pai sindicalista. Você virá numa família de pessoas que tem um palanque na garganta Pedroca. O seu primeiro presente será um megafone. Depois que sair da barriga, pois ainda no ventre você ganhou logo um macacãozinho do Che Guevara. Quem sabe conheço Cuba com você? Por causa da sua mãe estou lendo As Veias Abertas da América Latina. Que bom que você está a caminho Pedro, precisamos de braços e corações na batalha. No último evento familiar vi gente achando um absurdo sua mãe estar praticamente "na linha de frente" das atividades políticas em que sempre se meteu. Mas o revolucionário tem antes de tudo um profundo amor pela humanidade. Procuramos melhorar o mundo antes que viesse para cá. Não sei se deu tempo. As notícias não são boas - mas essa é a natureza delas, sempre o olhar que procura o mais trágico, pois assim se garante a audiência. Então por meio da minha profissão sabemos de guerra, fome, violência, pessoas morrendo nas filas dos hospitais, crianças sem escola... Mas também temos o que não sai na imprensa: os reencontros em família. Os abraços entre amigos. Almoços entre os que tinham saudades. Aqueles que teimam em escrever poesia. O barulho da chuva na janela. Quem ainda acredita em fazer teatro. Quem canta sozinho no meio da rua, até fazer estranhos virarem o pescoço. As árvores que crescem. Os primos que se visitam. Os cachorros que viram de barriga para cima e ganham carinho. Os gatinhos que posam para fotos. A saudade de quem se ama que há de ser saciada. Você vem para conhecer tudo isso e muito mais Pedroca. Não sabemos nem por onde começar a te apresentar. Quero quase fazer lista de tudo que quero que conheça, do Snoopy ao Palavra Cantada, dos livros infantis aos desenhos educativos, dos parques ao Sesc, dos brinquedos de montar aos de apertar, da "contação" de histórias ao Zoológico. Nossa Pedroca, você vem e traz nossa criança interior à tona, louca para brincar com você. Tantos amigos e parentes te disputarão para pegar no colo! Quero morder seu pezinho (bem levinho) e inventar histórias para te fazer dormir (ou acordar). Está chegando a hora de você sair desse casulo quentinho, escuro, talvez até meio apertado (talvez por isso vocês se mexam tanto). E aqui, um mundão de cafunés, cantigas, desenhos em papel, guache, TV Cultura e parque de diversões te aguarda. Tem a parte mais cinza também, mas esperamos te dar toda a energia do mundo para nos ajudar a colorir o que está sem sal, nem açúcar. Os Mendonça, Machado e Viola estão fazendo contagem regressiva para saber como são suas mãozinhas, nariz, boquinha... Que o ultrassom tem boa resolução, mas não exagera. Delícia mesmo vai ser te aninhar e dançar pelo quarto. Seu tio já colocou uma girafa a postos para cuidar do seu sono perto do berço. Está tudo prontinho para te receber. Menos a nossa calma. Não repare, mas como dizia a vó Dita, somos "loucos mansos". As risadas estão garantidas. E a mão esticada para quando você cair também.

Delusão

A nostalgia desenhou uma teia
O encontro recriou pontes
Voltar ao prolongamento da infância
faz o sono parecer supérfluo
As muitas ideias de uma criação
desnudam a emotividade
A língua nova da conversa pelo sorriso
e a lua explicitando bom humor e exagero
A palavra pondo em ebulição o fogo dos astros
A ocasião reencantou o destino
E o açúcar deu à luz
a pedaços novos de mim mesma
O reencantar que embota a lembrança da fugacidade
desse virar do avesso
Qual o caminho de volta?
Um soluço e a indecisão na encruzilhada
O trator real dilacera isso que não tem nome
A falta de ar de quando não dá mais pé
Pode ser o histórico meio onda do mar
O inevitável balanço de ano novo adiantado
Ou esse vinho esquecido na geladeira
que extravasa a corta pulsos que dorme em mim

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Deja Vu

- Já sei porque gosto tanto desse perfume.
- Descobriu agora?
- Vendo essa saída em comboio do cursinho. Acho que o cheiro me lembra minha "aborrescência".
- Ela não pode ter sido tão boa assim. Nem esse perfume pode ser tão antigo.
- Não sou tão retrô quanto você pensa. Dizem que nossa memória olfativa é a mais rápida.
- Nessa fase a gente espera o resultado do vestibular. Os pais liberarem alguma saída ou viagem que nunca mais se repetirá. E o homem da sua vida da semana passada ligar.
- E nessa você, que pensou que a grande prova da sua vida fosse entrar na faculdade, espera o resultado do teste de trabalho, que por sinal tem muito mais gente por vaga. Espera ter grana para aquele filme, peça, sonha em estudar fora e pegar avião sem ser a trabalho. As viagens dos seus sonhos já te esperam há uns três anos, já perdeu as contas ou minimizou o tempo sem trégua do batente, pois a última vez que pôs o pé em aeroporto foi a negócios. Você também espera outro homem ligar - só acha que é "o da sua vida desse momento".
- Eu escrevo para decantar.
- Eu troco de papéis no teatro. Mas eu podia absolutamente tudo na sua época. Era do tamanho dos meus sonhos. Ou seja, gigante.
- Você não sonha mais?
- Sim, mas não sei onde foi parar aquela que faria francês e conheceria a Cidade Luz só por causa do nome. Acho que tenho saudade dela.
- Mas nessa época tem amigas que te deixam na mão.
- E agora há promessas não cumpridas, mas parece que podíamos confiar nelas: com os furos, você não sabe que contas pagar.
- Será por isso que uns fumam demais?
- Hoje tem quem se drogue demais. Será que é para embotar o quanto estão "um pote até aqui de mágoa" com as promessas não cumpridas?
- Vai saber? Só sei que escrevo para não morrer.
- E se não esperássemos nada uns dos outros? O que viesse seria lucro.
- Podíamos fazer esse perfume que gosta com tanta água salgada derramada.
- Mas quando estive no seu lugar era mais romântica, sonhadora, idealista.
- Ser adolescente hoje já não é mais a mesma coisa.
- Agora o inverno é mais curto, mas o frio aumenta. Deve ser por causa da solidão da qual fugimos.
- Por isso que você tem que inventar esse reencontro?
- Como você não está aí? Não usei nada alucinógeno hoje.
- Você está levando os personagens para casa?
- Você é que está escrevendo demais. Mas eu não acabei aquela sua aula de yoga que estava te dando há...
- Já aprendi o essencial. Estável e confortável. Inclusive na guerra diária. É como na cãibra: temos que ter a coragem de descontrair para a dor partir.

Cena escrita a partir do poema de Mário Bortolotto "Do lado de cá da cidade faz muito frio/ talvez por isso os amigos bebam demais/ talvez por isso eu sempre cruzo as figuras no cinema/ do lado de cá da cidade existem acordos fraternos/ talvez por isso as pessoas estão sempre magoadas umas com as outras/ e choram tanto e bebem tanto/ eu já estive do outro lado da cidade/ só uma vez" na oficina "Da Poesia para a Cena", com Paula Autran Chagas, na Casa das Rosas, nov/dez/ 2012.

E do barro fez-se a arte

z
De repente olho para a produção do curso de cerâmica (que apesar de todas as faltas atrás de trabalho, não foram poucas peças para um mês e meio) e sorrio, mas ao mesmo tempo quero chorar. Por lembrar da tia e sua impossibilidade de entendimento:
- Pra que fazer isso?
Na hora esqueci a palavra final destas discussões, que é a definição de Ferreira Gullar “a arte existe, pois a vida não basta”. 
É que assim, de frente para minhas máscaras, mandala, potinho de missoshiro, copo de saquê, miniatura de busto, de pé, calicezinho com pingo, microvasinho com flor minúscula, potenciais brincos e pingente, arremedo de estrela, “vasos pós dramáticos” e “manjedourazinha” improvisando a árvore Bodi para seu Buda, lembrei daquela passagem bíblica estudada na escola evangélica em que paguei meus pecados “e no 7º dia Ele contemplou sua obra e descansou”. Lembrei do professor que dizia “os suicidas afrontam Deus: já que não me perguntou se queria vir, agora também eu é que decido quando vou embora” – e olhe que dizia não fazer nenhuma defesa em favor de se matar. Na verdade, agora acredito que criando é que temos a petulância de nos igualar a Deus. E a partir do barro então... Não foi dele que viemos? Retomar o contato com as origens, quase que fazer as pazes com o divino, nos reconectar com a mãe terra, ver surgir o que você imaginou, deixou a mão te guiar, o que tinha a cara de uma amiga, o que remetia à grande paixão de sua vida, planejar uma coisa e ver se formar outra, imaginar presente para os pais e amigos feito com as próprias mãos... Aprender com a mestra anciã  como no livro A Ciranda das Mulheres Sábias, de Clarice Pínkola Estes, que me iniciou no barro, que a mão é inteligente, que se não me centralizar a peça do torno não o fará, que o erro na cerâmica pode ser uma matéria prima de acerto, como nos trabalhos de clown, que se não fizer as lições de casa de desenhar, levar folhas e objetos que possam ajudar a modelar o barro, as tão sonhadas ideias virão aos 45 do segundo tempo, se desenhava criança, mas depois de conhecer a régua e o esquadro abandonei os lápis traumatizada, que a intenção inicial de dar as peças se transforma num apego após vê-las esmaltadas, prontinhas, que era muito mais vaidosa do que pensava, pois não queria “melecar a unha”, que aula teórica de esmalte, queima etc dá um sono sobre-humano, que peça pequena detalhista é – como diria o amigo – trabalho “de presidiário”, que gosteu mais de pintar do que de modelar propriamente dito e amassar o barro dava dores nas mãos como quando começou a estudar e fazer massagem...
Nem precisava aprender nada. Só de olhar algumas peças em estado de osso, de couro, de biscoito e a cerâmica, já era a suprema realização. Todas elas bonitas à sua maneira, minhas filhas, paridas dos meus dedos, feitas de olhos fechados, abertos, concentrada, desconcentrada, apaixonada, “cabrera”, ansiosa, confiante, emputecida, engraçada, dramática... Pulsando a vida por todos os poros, sorvendo cada gole até a última gota.
É que fazer o que gosto é minha pinga.

Reatando com o divino

A única coisa da qual não deveríamos morrer de excesso é o amor. Naquele dia, o osso do coração pedia para ser massageado. Há três anos não tinha coragem de por a mão no osso do peito, o esterno. E dessa vez, como classificou o namorado massoterapeuta da amiga yogue, botou energia além da conta: foi yang demais. Fez círculos com as pontas dos dedos, com a mão fechada massageou com os dois lados, repetiu as doses, foi para além do ponto em que cortam para cirurgia cardíaca. Quando fizeram nela no retiro de palhaço, bem no começo da faculdade, as lágrimas escorriam e batia o pé no chão de terra para suportar a dor. Agora, demorou um pouco para tocar um mal estar velho de guerra: o tranco que recebeu nas quedas da época do dente de leite. Cismou que vinha daí o grosso da carência nas relações, por sempre estranhar o acolhimento alheio dos tombos próximos. As lágrimas vieram. Mas desta vez, mais objetivas sabe? Foi para o banheiro. Viu o que a terapeuta disse há pouco tempo: era linda – mesmo com o que classificavam de beleza exótica. E achou que o colega do tantra tinha razão: o que tinha de mais especial nela, era o que chorava. E acordou tão flexível que topou ir à missa com a mãe, apesar de sentir-se budista há mais de sete anos.
Chegaram atrasadas e começou como criança a querer lixar a unha, sambar com os dedos na cadeira da frente, balançar o corpo. E como adolescente, quis questionar cada vírgula do roteiro que se projetava no telão, se irritou com demorar a voltar e quase nada mudar. Mas a adolescência é o prolongamento da infância e dá um descômodo para quem está nela. Lembrou da irmã: a gente tem que ter compaixão para as feridas dessa época que precisam de cura agora e lembrar o quanto não foi fácil na "aborrescência". Usou uma técnica quase meditativa: se apegou à recitação e não à necessidade cabeçóide que tem de esquadrinhar racionalmente tudo que seus olhos e ouvidos captam. É tão maleável em religiosidade nova... Não dá para ser na "velha de guerra"? E de repente viu para além da irritação de quase nada mudar desde que fez crisma, primeira comunhão, na era jurássica: era um ritual. Como quando ia ao seu centro e os mantras eram mais antigos que Cristo, mas a ideia era reconectar com os mestres ancestrais. Escrevendo, no dia seguinte, achou que a intenção podia ser tocar o coração – onde para os budistas mora a mente – e não mexer com o racional dela.
Olhou a igreja cheia de gente e viu que estava errada quando achava que eles não podiam ter o discurso paleozóico que agravada à terceira idade: tinha que atrair os jovens, pois os mais velhos iriam embora antes se a vida não mudasse a ordem clichê que se esperava dela. Se apegar à tradição funcionava por ali: a casa estava bem mais cheia do que já viu nos centros que frequentou – lembrou que eles eram menores, mas os templos, ainda mais detalhistas e suntuosos. Riu lembrando que a amiga carioca que conheceu no centro classificava o budismo de hobby de rico: menores e mais polpudas doações deviam dar conta dos templos super trabalhados. Já foi em centro com valores pré determinados para os ensinamentos. E o que ia agora tinha a liberdade de fazer a contribuição voluntária que pudesse. E a igreja continuava passando a cestinha de sempre. Devia dar certo, pois ela era familiar, continuava como quando foi meia dúzia de vezes, pois ainda era bem conservada. Achou digno o padre prestar conta das entradas e saídas da casa.
Quando falaram no papa, torceu o nariz, achava que era fascista, nazista. Ouviu sobre os jovens que vinham de fora e pensou se vinham estudar ou o que? Quis encontrar os colegas de bairro e lembrou das críticas dos que só iam à missa socializar. Como sempre, achou que as crianças compunham o mais divertido - tamanha a espontaneidade. Se interessou muito mais pelo sangue que pelo corpo de Cristo – afinal era uma devota de Baco nas empreitadas culinárias. Mas só socializaram o pão mesmo. Quando falaram em batizado teve que reclamar com a mãe que ela não estava no seu. Justificou que tinha que ser carregada. Não concordou com a passagem bíblica que falava em “não reclamar do salário” e lembrou dos amigos sociólogos que estudam o quanto a religião é eficiente para que as pessoas se mantenham em seus cabrestos. Mas lembrou de ter escutado quem entende que uma primeira tradução já perde 30% de seu conteúdo inicial. Ali devia ter pelo menos 60% de “desvirtuamento da mensagem original”.
O trecho “queimará a palha com fogo que nunca se apagará” chamou a atenção, mas não entendeu, teve que pedir explicação depois. Fez quase uma meditação: aproveitou as músicas para treinar ritmo com as palmas. Cismou que estava meio debochada no momento do louvor e fez como na yoga: relaxou para ficar confortável. Falou sozinha com o que entendeu e o que não compreendeu do que era dito, cantado. Mas lá pelas tantas, como diria o Osho “fizeram com que deixasse a mente esperando na árvore”. E aquela parte do corpo que parece ser só mística, acreditou de novo. Depois de mais de um mês e meio se sentindo “à deriva”, "sem ninguém por nós", "numa vida que era um engodo com alguns momentos de idílio".. Falou com o que havia de divino no universo, nela, disse o que queria, o que precisava. E no final “pegou o padre para Cristo”: tirou dúvidas, brincou, soube das novidades, fez sugestões. Foi acolhida como se fosse uma antiga frequentadora, foi bastante estratégico da parte dele. Para ele, não reclamar do salário tinha a ver com as pessoas que fazem baixo rendimento render, ao contrário de algumas que tiram salários melhores e nunca é suficiente. Lembrou da colega com salário mínimo, carro, barraco, filho... Ok, o pai dele paga praticamente tudo. O padre contou como enxugou as contas da igreja e ela pediu para ele dar oficinas desse milagre. Mas depois, investigando, ele só podia ser virginiano: a mãe dela também faz aquele milagre da multiplicação com qualquer coisa que entre em caixa.
Voltou com a mãe pela frente da maior favela de São Paulo, comemorou um pouco a vitória do Timão, mas os ouvidos cansaram e a imagem da manhã é a de um menininho com camisetinha do Corinthians tampando os ouvidos por causa dos fogos. Pena que a câmera não funcionou! Se divertem em tudo que é lojinha, mural, burburinho popular. Faz a raríssima e curadora sesta matutina. Mata a saudade de parentes queridos, namora com o tablet do primo e olha enviesado para o presente de loja com mão de obra análoga à escravidão – mas fazer o que, cavalo dado não se olha os dentes. Volta mergulhando numa dorzinha de quem desconfia não aguentar mais sonhos desandarem, queria abrir a porta do carro e voar para cessar aquela ladainha estúpida de sempre, dorme lavando o rosto, se perguntando "quem é acha que dá para aguentar mais expectativa indo para o ralo? Estou de novo ligando para o congestionado telemarketing do céu, ficando na espera e vai cair a ligação?" Mas acorda talvez com uma resposta divina: “você não sabe do que Deus está te livrando”. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Peça perdida do quebra-cabeças

Ralar o joelho dói
e sentir mareada
dos naufrágios anteriores
desgasta o otimismo zodiacal
E essa querência de rede
A precisão de estofo
O descômodo desencaixe
visto pelos fora do eixo
como saudável
Mas anos depois
explicita essa necessidade
de pertencimento
Só não sei se minha mesma
ou de tudo e todos
que nos enlouquecem coletivamente
ao nosso redor

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Dança indiana como terapia corporal

O teste drive de Bollywood dance remeteu ao filme Bollywood Dreams. E bem, ao que tudo indica é um pré requisito para tentar a vida na indústria de filmes indiana, logo não há a menor chance de concorrer com as aspirantes a estrelas locais. Confessa para a professora que não tem coordenação, mas ela consola com o que parece ser óbvio, só que nenhum mestre deixou isso tão explícito antes:
- Isso a gente não tem mesmo, nós construímos.
Não pega metade dos movimentos de mãos, pernas, braços e cabeça, mas só de ouvir aquelas músicas que parecem ter um que sagrado, já se sentiu praticamente no Taj Mahal. Fica chocada com a professora girando o joelho naquele chão de madeira: deve fazer aquilo há gerações. Mas para tentar, precisará de joelheiras, pois a coleção de roxos pelo corpo já está de bom tamanho.
Queria ficar no rumo do ventilador, pois como classifica a medicina ayurvédica, deve ser estupidamente pitta (inacreditavelmente calorenta). A paisagem de fundo era o congestionamento da Av. Domingos de Moraes, mas não saberia definir quem tinha os movimentos mais precisos e trabalhados: a professora Gyaneshree ou a dançarina Maíra.
Foi tentando se encaixar aos mudrás e detalhados deslocamentos: sentiu um quê de dança espiritual ali e olha que não está acreditando em nada há quase um mês e meio. Mesmo com as paradas periódicas para tirar dúvidas e conversas, sentiu uma avalanche de ... serão endorfinas ou serotoninas? Para quem nadou e caminhou a vida inteira, de repente sentir que a dança traz reações novas é mágico.
A outra dançarina tinha músicas indianas no celular: queria receber todas, por como toque do aparelho, recebimento de mensagem... Não consegue começar a fazer algo sem se envolver até a medula, abraçar com uma empolgação juvenil tudo que traz essa realização intangível, esse ganho não mensurável, esse cansaço gratificante de experimentar "deixar a cabeça na árvore" e virar a própria dança.
Os sons e as expressões tão característicos, o jeito da professora, remeteu à colega indiana que teve no trabalho 3 anos atrás, à novela Caminho das Índias, o quanto diziam que não era bem como a Globo mostrava, o restaurante indiando Tandoor e o de dar água na boca Gopala. É uma atmosfera de cheiros, sons, cores, gostos, não se pode dizer que ancestral, mas que reverbera num canto interior escondido, como quando ouviu mantras pela 1a vez e na segunda já saiu cantando.
Como esta professora é um presente da deusa das artes Sarasvati, revelou que dá aulas de Katak, uma dança clássica indiana que colabora com a arte dos contadores de histórias, no Centro Cultural da Índia, às quartas e sextas às 18h30, nos Jardins, de graça: http://dancaindianabrasil.blogspot.com.br/2011/10/aulas-de-kathak-no-centro-cultural-da.html.
O ritmo conseguiu milagres significativos: deixou a verborrágica mais contemplativa, a "corta pulsos" mais otimista...

domingo, 9 de dezembro de 2012

Navegação rio acima

Os 35 sangram
de vertigem e falta de sono
Os 35 sujam
o que não quero nem preciso mais
Os 35 doem
a descoberta de que a escolha sempre foi minha
Mas me agarrei a um sonho mofado
Os 35 ralam
de tombos e amores enviesados
em que matei plantas promissoras por afogamento
Os 35 dão um vácuo
de desmamar duma dieta tóxica
e pedir abertura em relacionamentos viciados
Os 35 vazam
o que não encaixa mais
e o que tenho de mais apaixonado em mim
Os 35 não tem limite
até que o corpo me breca
Os 35 me lavam de água salgada
só que depois de uma longa jornada noite adentro
é reconfortante
Os 35 levaram a ânsia
de sorver a vida em goles sôfregos
Os 35 cantam
com o avesso do meu próprio sofrimento
Os 35 acham o tempo que passou em mim bonito
Os 35 adiantaram presentes e adiaram desejos
Os 35 tem menos confete
Mas muito, muito mais a comover
Evoé

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Semi nova

Ficar mais velha em dezembro é adiantar as promessas de ano novo. Vou fazer exercício com maior frequência. Meditar mais. Parar de comer a unha. Não me render mais aos "bobajitos" quando estiver com fome emergencial  Abusarei menos da família. Não adiarei ideias e projetos profissionais.
Só que o primeiro presente do dia foi um tombo.
Vai o que, cara pálida? Há quantos anos mesmo escuto essas promessas? Preciso mesmo refrescar sua memória?
Daí comecei o dia de maneira inusitada: lavando louça, varrendo casa, dando um trato no banheiro, jogando lixo, pondo roupa na máquina e jogando o que não servia, não seria buscado, o que cutucava minha gastrite só de olhar. Até a trilha foi inovadora: um CD de samba ganho e nunca escutado - não é a trilha dos meus sonhos. mas serve bem para quando baixa a Amélia em mim - coisa rara!
Tem uma música, se não me engano da Zélia Duncan "não me reconheço mais... Suas roupas são outras... soltas de mim... as palavras da sua boca". Tem um estranhamento depois de comprar meu primeiro anti idade. E de repente, não mais do que de repente, querer ir à 25 de Março não para comprar figurino, acessório de cena, cenário, mas porta sabonete, tempero, medidor! A dona de casa demorou, mas chegou. Antes tarde do que mais tarde!
Como uma das resoluções internas é não reclamar mais, faço o balanço das vitórias diárias: a saúde voltou, tem departamento que estou parecendo até "aborrescente", agora cozinho ainda que apanhe das receitas e adaptações, os amigos mesmo mandaram bem nos últimos tempos, fiz uns três cursos de teatro este ano, não produzi metade do ano, mas estico a verba até 2012 acabar, cantei como estava querendo, levei a tragicomédia que me gerou para a terapia, não me deixei levar por impulsos de 5a categoria, aos trancos e barrancos estou voltando a me exercitar na unha, meditando o quanto meus 220 voltz me permitem, pela 1a vez curti minha entressafra, matei a lombriga da cerâmica, encerrei literariamente um ciclo insistente, deixei de dar uns murros em ponta de faca, neste fim de ano ri de uns dramas, voltei a estudar dramaturgia, ensaiei retomar meu projeto, cortei relações duvidosas e pelo menos me empenhei para me reconciliar com a comunicação.
Mas como brincou a professora de dramaturgia: onde é que isso vai dar? Lugar nenhum. Mas pela primeira vez, essa constatação não causa angústia. Tá, ninguém aguenta mais meus "Deus existe, mas não funciona", "fez uma experiência com a gente não deu certo e formos abandoados", "existe, mas não se envolve", "estamos à deriva", "a vida é um engodo com alguns momentos de idílio", mas o que posso fazer se é o clima que me bate depois de 21393218934 acordos em que entrei com a buzanfa e eles com o pé? Ok, a vida é impermanente, mas a minha é falta de educação. E como diz o provérbio sagitariano, já te disse mais de um milhão de vezes que nunca exagero. Oops. Não ia reclamar. Mas esta ironia que me é característica é tão irresistível.
Vou provar que é um ano novo. Caminhar. Meditar. Cozinhar e dar certo. Cortar o quanto meus pais são invasivos. Pintar a unha. Tirar umas possibilidades da gaveta. Preparar uns livros pra mandar para as editoras. Por limite quando não der conta. Aproveitar o Parque Chico Mendes e o Sesc São Caetano. Brincar mais com o Bidu. Ver mais minha família. Dar menos meu fígado para os trabalhos.
Vou?
Feliz promessas novas ruiva de estado de espírito.
P.S.: Terminei a faxina mudando tudo de lugar. A terapeuta diz que isso é disposição para renovar as emoções.



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

De como driblar petulância do JK Iguatemi

Depois de uma entrevista com fome em meio a todos os prédios comerciais do mundo te oprimindo num sol esturricante, com medo de desmaiar até o trem, a única possibilidade de evitar cair como na semana anterior foi parar forçosamente no Shopping JK Iguatemi. Lembra do dia em que passou na Daslu e trabalhava perto, só para conferir de perto a petulância local. São vizinhos.
Para combinar com a cidade em que está e o cruzamento da Marginal com a avenida que o batiza, este centro de compras é pensado para os carros. Encontrou a entrada de pedestres, não sem antes passar sem escapatória por uma saída de ar e se sentir a Marilyn Monroe ruiva, com a saia querendo grudar no seu pescoço. Ao menos não havia seguranças por perto para rir do mico. Já os carros... Bem, nem tudo pode ser perfeito.
Acreditou que tinha entrado só para descobrir os restaurantes que frequentava quando era repórter de TI e negócios e as fontes eram generosas: não podia ser possível que houvesse opção à altura do seu desemprego temporário. Mas acabou encontrando uma natureba razoável. Avisaram que o crepe era pequeno. Adicionou um suco com desconto no outro cartão. Apostou na recomendação da amiga que quando é massa integral, não está morrendo de fome menos de três horas depois. Bem, seu estômago parece aquele leão mugindo no começo dos filmes da MGM, quer dizer: não foi bem assim.
Acabou andando mais do que deveria no shopping. Lembrando quando a tia a levava nestes passeios que não eram para o seu bico, mas gostava da companhia dela mesmo assim: foi quem ensinou a gostar da Madonna e do U2 e não herdar os preconceitos provincianos do pai. Juntas investigaram o que vinha na cobertura do sorvete que na época era o único com farofa. A outra tia levou as sobrinhas à exaustão no Ibirapuera e, engraçado, o legal nem era a visita em si, mas simplesmente pegar o ônibus e tomar sorvete de brigadeiro na Americanas: obviamente nunca mais teve o mesmo gosto.
Como se sente oprimida no Park Shopping São Caetano perto de casa, achou que lá seria pior. Às vezes não entende como a mãe gosta só de ver vitrine, já que se sente uma consumista enrustida - sempre encontra coisa que gostaria e tem que voltar para casa e fazer chá de alho para matar as lombrigas. Desta vez suspirou aliviada: nem tanto, só gostou de dois vestidos, que juntos custavam mais de R$ 1000.
Lembrou da professora Cristina Mutarelli, pois os frequentadores lembravam uma definição dela: "tinham uma cara de quem comeu muita proteína na infância". E uns figurinos de quem foi muito para a Disney na aborrescência. Assim como os mendigos são invisíveis para muitos da classe mérdia, também se sentiu invisível para eles.
Muito lustre exagerado, até na drogaria. Tinha umas lojas misteriosas, com vitrine cheia de taças e nem dentro ou fora do shopping foi descoberta uma entrada para ela (ficava na saída). Outras até tinham esse mistério, mas avisavam na entrada que ainda estavam fechadas. Lembrou do compadre que tinha estudado técnicas de varejo, pois viu aplicada uma lá: os chãos parecem ter sido lavados com overdose de cândida, que é para dar medo de cair, andar devagar e ver tudo quanto é vitrine.
Dinheiro não é sinônimo de bom gosto. Uns laços dourados estavam ligeiramente over atrás de uns vidros. Outras tinham aquelas paredes de um quase irregular proposital, que a tia que levou muito para esse tipo de passeio também fez na casa do interior. Viu uma com uma exclamação meio carnavalesca que achou bem bolada. Muitas lembravam editorias de moda, como a que ilustra esse post.
Ficou chocada por encontrar uma Hering. Pensou que fosse quase marca de pião de chão. E não se conformou de achar mais de uma Zara. Eles não trabalhavam com mão de obra escrava? Não vai acontecer nada com estes comerciantes mercenários? A vista de São Paulo lá de cima é muito da bonita, mas tem que ter "olhos para ver".
Como rico gosta de joia hã? Zilhares de joalherias. Se tivesse dinheiro compraria aquelas bio jóias, que são tão absurdamente bonitas, misturando materiais naturais e preciosos, que quando divulgou conseguiu simplesmente o Jornal Nacional com o projeto. Uma coisa exclusiva, rara, que dava exposição e a mídia mais disputada do País. Mas gosto não se discute, se lamenta!
A praça de alimentação tinha uma coisa rara neste setor: espaço entre as mesas e cadeiras. E era tanta madeira nos restaurantes que metade da Mata Atlântica restante deve ter servido para tornar essa região com menos cara de "comendo somos todos iguais". Qual era o filósofo que achava que devíamos nos esconder para comer, pois era tão vexatório quanto ir ao banheiro?.
Entrou num estande da Samsung encantada com uns desenhos de rostos e uma espécie de móbile intitulado Art Gallery. Mas como era de se esperar em se tratando de Iguatemi, desconfiaram que a visitante não tinha cacife para mais do que xeretar e foi deixada às moscas. Não resistiu e perguntou para um vendedor, que disse se tratar somente de uma decoração. Está explicado. Falar o que com quem gosta mais do enfeite do que do produto?
Claro que não conhecia a maioria das lojas, mas era de se esperar, em se tratando de uma pessoa cujo guarda roupa é composto de peças apertadas em cima da prima magérrima e peças folgadas em baixo da tia larga. Mesmo assim considera-se uma privilegiada por ter parentes de bom gosto, consumistas e generosas, já que a grande maioria do que ganha ela ama de paixão. E se elas que podem circular nesses circutos de compras abastados não falam da maioria dessas marcas, tem coisa melhor e mais barata.
O mais engraçado foi ver na entrada um carro com uma marca e cismar que a Gucci tinha personalizado um Ford Ka. Não podia ser, a demostradora falou que eram pouquíssimas unidades exclusivas, essa marca tem o que com carro popular? Na saída teve que apurar esse ruído na comunicação: era o 500 (leia com sotaque italiano). Ah tá. Se é assim, então faz sentido.