Cacei em meu baú de recordações o cartãozinho de uma professora primária, que me inspira a personalizar meu exame de retina, enquadrar e pendurar um controle que faço sempre, mas que agora me despertou um olhar de artista plástica. Aquela paisagem avermelhada estilizada morreu na minha infância e desapareceu dos meus tesouros guardados, mas sem querer me fez bem visitar a adolescente e menina que fui.
Matei saudades de primas que ainda são próximas de coração, mesmo com a distância não colaborando. "Desentendi" como tem quem passou a infância tão próxima se distanciou quilômetros adulta. Puxei pela memória, mas não faço ideia de quem era "meu amor" a que uma colega fazia referência numa correspondência.
Vi fotos centenárias, de quando ainda tinha o ar de quem está quase com medo da câmera. Reencontrei pelas linhas inspiradas uma amigona de adolescência (que como diz o Rubem Alves, é um prolongamento da infância), diziam que éramos parecidas e ela recomendava enfática para sermos nós mesmas, doesse a quem doesse. Até hoje são conselho e batalha atuais!
Cartões de comadre que perdemos o contato periodicamente e retomamos "antes tarde do que mais tarde". Como sempre, ela se deprecia e desenha ela mesma gorda: continua fazendo o mesmo no Fuçabook. Mais cartões do antigo cunhado que do irmão dele. Faz sentido, devo ter dado cabo e já nem lembro mais. Um cartaz que fiz com o verso da música do tio com quem me dou melhor "vamos amar por igualdade, se Deus for negro você não sabe". Que "judiaria": ele perdeu a maior parte das músicas que fez, esqueceu, gravou, deu para amigos e escafedeu-se. Todo artista é relapso assim com sua obra? Se não tiver família ou amigos cuidadosos querendo preservar ou levantar tudo depois, era uma vez...
Entradas, releases, máscara de mergulho, cardápio das viagens à Disney: já não distingo o que foi a trabalho e o que foi diversão com minha tia, pois foram duas idas e vindas, ambas ganhas. Guardava tudo que pudesse reter na memória as comidas, as paisagens, os frios na barriga, os mergulhos, as risadas, o sol, aqueles flamengos no "lagozinho" artificial, a montanha russa em que fizemos um escândalo e não nos conformamos com os gringos impassíveis atrás de nós...
A coleção de cartões postais! Deus e o mundo me trazia mais um para aumentar a quantidade dos que guardava, lugares que queria conhecer, outros que tinha visitado, agrados de amigos e parentes que talvez gostariam de ter me levado na bagagem, mas traziam uma partezinha do lugar visitado, só para manter em banho maria minha ânsia mochileira represada.
Os telegramas e cartãozinho das tias, inspirados. Os que ganhei quando menstruei a primeira vez fazem rir, são espontâneos, comemoraram comigo uma visita aguardada e nem parece que já se passaram tantos anos. A vizinha desenhou um rio vermelho no que me deu. A das tias já era cor de paixão e era um prenúncio da profissão futura: dizia que anunciaria aquela data tão histórica nos jornais, na TV...
Misterioso reler desejos de quem não lembro mais o rosto. Cartinha de uma das primeiras paixões: também não lembro mais a cara dele! Segredos escondidos de quem hoje não se abre nem por decreto. Cartinhas do tio, primo e tia paranaenses: só lembrava do avô fazer estes registros periódicos de nossa saudade em papéis da máquina de café em que trabalhou, do resto da família não tinha lembrança de receber cartas...
Fotos que jurava perdidas. Cartões de outras professoras, com paisagens diferentes da que procurava naquela noite. Pedido de gravações de músicas da prima: sons que não ouvimos há uma geração. Fita com minhas locuções na rádio: onde ouvir isso hoje em dia? Saudade da banda que o cunhado tocava, sem querer a música já dava indícios de que eu e o irmão dele acabaríamos no barranco amoroso.
Recursos de quando fazíamos matérias antes do Google: catálogos, propagandas, releases impressos, fotos impressas. Carteirinhas de estudante do período paleozoico. Uma fotozinha da segunda paixão da vida: se não fosse pelo baú, esqueceria completamente como ele se parecia.
Dias depois, estas memórias me saltam com maior importância: provavelmente por uma colega estar tratando câncer e ter dito que depois de uma convulsão perdeu ou ainda vai recuperar parte do seu passado. Fico me achando nada sem os amigos, primos, viagens, amores, vizinhas, sonhos antigos que me estofaram até aqui. E se apagasse como a amiga de profissão? O que ficaria? Faria falta o que não se lembra, como em noite de bebedeira? Sonharia com o que tento recuperar? Como saberia o que é vigília e o que é sonho? De que são costuradas estas lembranças mágicas?
Tenho medo até de tirar pó do baú e um fiapo do que vivi se perder. Um mundo significativo meu está lá. Se minha colega rever o que guardou, recupera o que se foi? Quem deu licença da memória pregar peças assim em nós? Dizem que uma parte é memória e a outra, invenção. Seria mais criativa se me dessem brancos definitivos? Acho que escrevo tanto para o que passou não escapar de mim. O que fazemos por quem a memória escapuliu por entre os dedos? Eu recomendei a ela que escrevesse... É sempre catártico.
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