quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Órfãos de Deus

Te estudei protocolarmente oito anos
Mas não adianta quando o racional te abraça
e o coração não se desarma
Te procurei em igrejas grandes, pequenas
simples, suntuosas
ritualísticas, pés no chão
Cheguei a vislumbrar um fiapo do que representas
em meio à natureza
meditando, fazendo yoga
tomando chá de planta, recebendo reiki
Mas escapas por entre os dedos
como a areia fina que escorre de ampulheta trincada
Te busquei desvairadamente
feliz com minha vida
e desesperada com ela
Tentei lhe falar na rua,
em casa, nos templos,
em retiros, nos parques,
em cachoeiras, com os pés n'água
Minha voz  quase ecoou
jurei ter te encontrado
de mãos dadas com criança
rolando com cachorros
com gatos nos colos
Ouvindo mestre realizados
ou na simples presença deles
Só que na hora da dor maior
estiquei o braço e me desequilibrei
eu chorei até a cabeça doer
Olhei para os lados
mas nem um rastro da tua presença estava lá
Pedi tanto por minha fragilidade
pela minha impotência
por minha inocência
pelo quanto o quanto amo o que faço me cega
pelos homens da minha vida
que deixaram em mim
cacos fincados em lugares incômodos
Eu gritei, me indignei
pelos que têm fome
pelos que dormem no frio
pelos que perdem seus pais
pelos que quase enlouquecem
confundidos por não suportarem a realidade
pelos que não tem médico
pelos que não podem estudar
pelos filhos que vão antes dos pais
pelos bons que adoecem antes
Eu fiquei rouca
fiz pararem preocupados
aqueles que nunca me viram
mas se condoeram das minhas dores lancinantes
Ah Deus onde estavas
quando me vi na cova dos leões
quando me sangraram sem que pudesse me defender
quando me julgaram antes da defesa
quando me adoeceram antes que o remédio fosse criado
Eu comunguei, ouvi minha respiração,
dancei descalça na grama
dei o melhor de mim
fiz o que pude
pelos que amei
pelo que amava
Mas te perdi
em meio a água salgada
que lava minhas indignações
Ah Deus porque me deixastes
se tentei manter o cordão umbilical intacto
O que respondo quando me oferecem teu consolo
o que digo quando garantem teu apoio
de onde vem a mágica da vida
para onde vai o desconsolo do abandono
Onde cobro um dom relegado à margem
um amor incondicional que não encontra eco
uma batalha de armas riscadas e braços com cãibra
um dom que é também uma sina
Porque me cobraste uma fortaleza
que sequer me apontaram onde erquer
e como sustentar?
Onde se encontram
e se resignam com o vácuo dessa busca
os orfãos de Deus?

sábado, 27 de outubro de 2012

Batida do Amor Resiliente

O amor entendeu
que teu coração era comunitário
O amor entendeu
que tua ânsia pela arte tinha que ser sorvida em grandes goles
O amor entendeu
que teus espaços são imprevisíveis e não exclusivistas
O amor entendeu
que as amizades têm maior urgência
O amor entendeu
que quando a música precisa, teus dedos cantam
O amor entendeu
que é terapêutico e não definitivo
O amor entendeu
que é ansiolítico e não preenche todos os espaços
que tem dor que temos que olhar nos olhos
Mas sozinhas
O amor entendeu
que embora corra em nosso sangue
a música, dança e pintura indígenas
Nem a rua em que moramos é mais nossa!
Por tudo isso
e o que não consigo tatear para nomear
Esse reencontro de pele, cheiro e suor
nem mora naquela vertigem arriscada
que no mergulho quase põe os pés no ar
Nem se acomoda
na prateleira do embalo na rede
Só quer ser ouvido e lido
E por não se adequar a caixinha alguma
Ele fica assim meio sem chão
procurando palavra para vestir
e se reconhecer refletido na poesia
Espera ansioso por uma nota musical
para quem sabe dar as mãos numa canção
E enfim suspirar aliviado
que bom ter você ao meu lado

A terapêutica do trabalhar ensandecidamente

Cortando apresentação e colando nas fichas de apoio ao apresentador já tinha tido um processo de cura,  num dos primeiros plantões: guardadas as devidas proporções, já tinha batalhado pelo que os colegas do serviço fazem: democratização da saúde bucal. Atendimento emergencial e implante mais barato para o amor de repescagem que virou amizade à distância. Torceu para que ele terminasse o tratamento, apesar da nova fase de investimentos na eternização da existência dele. E comemorou: "antes nela do que neu"! Colou tudo errado ao término da ajuda oferecida, mas - bendita seja a cola Pritt - salvou tudo a tempo!
E no "intensivão" de capacitação, vivências, confraternizações e premiação de voluntários, se emocionou ouvindo depoimento das mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pelo projeto Apolônias do Bem. Esta é a padroeira dos dentistas, que teve seus dentes quebrados e arrancados. O segundo maior foco da violência, nestes casos, segundo a Turma do Bem, é a boca. Dezesseis tomaram paneladas! Primeiro que ouvir parabéns de uma delas já a fez dormir maravilhada. Segundo que depois de lavar o rosto com água salgada, lembrando da colega que arrastou para a Delegacia das Mulheres, mas não conseguiu fazer registrar a queixa depois de quase ter sido sufocada pelo companheiro ainda grávida, sentiu-se profundamente grata aos homens da sua vida. Todos muito civilizados. O que foram xingos e gritos perto do que ficou sabendo? O que não nos mata nos fortalece.
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Travessia


E entre tantos sorrisos
Sem esperar, o seu
Faltando um pedaço
E mover mundos e fundos
para fazer com que sorrisse de novo
e falasse mais
e fosse protagonista
onde quer que fosse
E meses e meses atrás
a mutilação da dor
E a briga
para salvar
a mais bonita curva do ser humano
Subitamente um assalto
de curiosidade, petulância e desejo
para que fosse restaurado
apesar da nova fase da vida
E quem salva essas brincadeiras,
conversas e trabalhos
se não os profissionais de branco?
Uma antiga peça tem razão
deixe que as fotos fiquem velhas
nem é o caso de apagar o passado inteiro
mas editar essa distorção do brilho exagerado delas
deixar em sépia
só um quadro na parede
como na poesia do Drummond
com teia e poeira
talvez dificuldade de lembrar
A incômoda travessia entre as recordações
e de repente em meio à urgência atual
troco os pés pelas mãos
por ainda estar na prateleira errada

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Gastrite sentimental

Ela não precisava saber que ele será pai três meses e meio depois da separação. Nem duvidar da amizade de quem contou como quem passa uma receita de bolo. Muito menos questionar os pedidos, promessas e adiamentos tão racionalmente construídos nos anos anteriores. Lembrança indesejada que ele contou ter pedido um filho da cor dele, com ele como pai, muitos anos antes. Recordação indigesta da mãe dele jurando que já se gostavam na infância, batendo papo, aos pés da cama, enquanto as demais crianças voavam em rasantes estripulias pela casa. Podia ficar surda para a voz dele contando para a avó do amigo do atraso, que acharam que dessa vez o herdeiro vinha, mas não tinha sido naquela ocasião. Adoraria não sentir vontade de quebrar em pedaços cada skate que passava perto dela desde então. Justo agora que este era o segundo esporte mais popular, perdendo apenas para os marmanjos correndo atrás da pelota no gramado. Não queria pensar para a definição daquele mal estar, queria sumir com a sensação que não tinham palavras para a transferência super sônica de sonho. Já sentiu algo que não tinha nome, cor ou cheiro quando ele tinha pedido para não procurar mais, para não perturbar a nova... mulher? Ficante? Namorada? Não interessava, queria que fossem felizes na Patagônia, mas sem participar disso, nem à distância. Não se conformava dos homens não ficarem amigos depois das histórias acabarem ou demorarem tanto para conseguir isso. Justo os dois que tinham esse amor de repescagem desde a época dos dentes de leite. Só o músico foi capaz de ficar amigo na sequência do fim, mas eles são seres à parte, criaram um mundo próprio, como os piscianos. Para que desconfiar que as horas extras noturnas e de fim de semana tinham motivação amorosa e não capitalista? Podia sumir com a quase certeza de que quando o outro tem ciúme, ele mesmo quer ou já faz algo meio transgressor. Não tinha que duvidar de uma paixão que deixava sensações físicas insistentes e incômodas, marcas nos tecidos da casa e rendeu tratamentos nos últimos 24 meses. Não por acaso paixão queria dizer suportar forte sofrimento. Desnecessário concluir que isso era patologia e não amor. Um filmezinho de quinta categoria traz o flashback que podia ser apagado dele perdendo o sono quando soube que as entidades do candomblé previram que tinha nenê por vir. Lamenta não ter apagado do computador a foto dele com o filho da amiga no colo . Acha sem sentido  voz dele querendo revê-la quando ligou uma vez chorando por outros grilos e já não estavam mais juntos. Definitivamente não precisava rever tudo em slow motion, o efeito que ele usava em seus free lancers e abortar os sentimentos mais confusos e contraditórios pela segunda vez em três meses e meio. A amiga tem razão. Quem dera nossa vida fosse um retrovisor sem visão traseira. Como na volta da viagem à cidadezinha com visual de antiga ferroviária e neblina londrina.

Do Mesmo Tecido da Infância


Ainda somos as mesmas
que enterrávamos passarinhos no campo
pois principalmente os animais
vão para o céu
Alguns filhos, algumas lágrimas
Dores que já marcaram a pele
Medo que mudou a cor do cabelo
Uma ou duas páginas publicadas
Alguns amores desfeitos pelo caminho
Um cão que faz as vezes de filho
E não recebe a atenção devida
Ou um filho que tira de letra
o que tira o rebolado do adulto
Umas paixões ensurdecedoras
Umas amizades que se esvaíram
Mas ainda somos as mesmas
que enterrrávamos passarinhos no campo
O respirar cheiro de mato
que cura todas as feridas
Cursos terminados à ferro e à fogo
Outros abandonados com dor no coração
Saudades mais ou menos esquecidas
Viagens emergenciais
outras adiadas e tão sonhadas
Algumas impensadas para contar aos netos
Ainda somos as mesmas
que enterrávamos passarinhos no campo
e acreditamos quando nos prometem
um amor como na época
dos dentes de leite
Saudade doída da família
que tem cheiro de café, chuva e terra vermelha
Uma fortaleza dissimulada segue adiante
segurando a queda da água salgada
Mas às vezes deságua...
Numa exposição de grafite
Ainda somos as mesmas
que enterrávamos passarinhos no campo.
Francine Brandão

Leia o mural de recados do prédio...

...desconsiderei os avisos e de repente me vi presa embaixo do balcão do computador, de camisetão de dormir, com o pintor pendurado na minha janela aberta devido ao calor. Se estivesse na cozinha ao menos oferecia comida. E no escritório? Pergunto se ele quer "tuitar" a pintura desta manhã? Meu cachorro não aceita a invasão aérea e late para o alpinista das tintas. E eu ali, descendo da cadeira, mais sem graça do que nunca, inventando conversinha pra boi dormir e o tempo passar mais rápido:
- Tem que ter coragem para fazer rapel nesta janela heim cara?
- A gente acostuma!
Será que demora demais para pintar este lado da parede? Minha coluna vai gritar daqui a pouco os maus tratos de ficar torta na cadeira disfarçando a falta de calça do pijama depois desta noite dormindo no quarto transformado em sauna.
Podia ser pior. Quando morei perto do metrô com uma colega do centro budista, uma manhã ela acordou com a manutenção abrindo a janela. Já pensou pegar a gente dormindo com o traseiro para a lua, quer dizer, para o sol? Mico campeão de todos os tempos.
- Ah, se quiser tirar esta rede de proteção fique à vontade! Me pendurei, mas não consegui: a inquilina caprichou para segurar o filho dela... Não faço ideia como retirar...
- Pode deixar, a gente pinta devagarzinho, com mais capricho!
Demoradamente? Ah, céus, passarei a manhã escorregando para baixo do computador. Tão sem graça que já até tinha esquecido o que buscar na Internet. Ria sem jeito para o cachorro deixar de latir para o pintor e fazia contagem regressiva para o martírio acabar.
Cem anos depois, de janela do escritório livre, tento correr para o banheiro. Preciso de estratégia de guerra para me movimentar nesta casa que se transformou no Big Brother: agora é a janela da sala que escancara o outro pintor.
Nunca, nunca mais deixo de ler o mural de recados do prédio!