domingo, 27 de julho de 2014

Insone

Noite dilatada
barulhos amplificados
cansaço fanfarrão
me deixa afundar
em delírio onírico
uns instantes de morte voluntária
mas o respirar intermitente
me frita nos lençóis
dá a fome inviável
das madrugadas insones
criação encroada
das linhas não expressas
molha olhos e travesseiro
ah, a cabeça
das ideias mirabola um vespeiro
alquimia wicca
assenta esse coração pandeiro

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Capineiros odontológicos

Eu sou cara de pau, mas dentista é "falta de educação". Eles "capinam roça" nos nossos dentes, pedem para bochechar um fluor que não disfarça o gosto de ferro quando cuspimos sangue na piazinha deles e têm a "cara larga" de avaliar:
- Não foi nada, vai!
- Doutor, saiu sangue da minha boca, como assim?
Ultimamente, só falto perguntar orientação partidária, time e religião antes de marcar consulta. As secretárias não entendem nada:
- Isso é realmente importante?
- Claro! Ele colocará três ferramentas na minha boca e vai disparar aquele falatório carente de sempre deles. Se for malufista, não conseguirei argumentar e terei uma síncope na cadeira.
Lembro de quando trabalhei na ONG Turma do Bem e o presidente fazia um mea culpa de que era uma faculdade elitista e para atender os poucos que pudessem pagar. Seria muito pouco provável encontrar algum de jaleco branco a favor do Bolsa Família. Faço concessões:
- Marco se não falar em temas polêmicos.
Mas também quando eles não abrem a boca dá mais nervoso ainda! É como ginecologista e depiladora antipáticos: começamos a prestar atenção no que estão fazendo e aí fica ainda pior do que o atendimento já é.
Sempre que fico cara a cara com o teto braaaanco dos consultórios deles sugiro (quando posso cuspir):
- Podiam fazer uns grafites no teto, a gente prestava atenção noutras coisas que não esse ziiimmm aflitivo da maquininha.
Trabalhei com uma dentista mexicana que dizia ser uma profissão que já se focava demais num detalhe e quando especializavam, ficavam ainda mais concentrados num pedacinho deste tamanhinho do ser humano. Brinquei com meu dentista sobre isso:
- A gente conta de um colega que cruzou a América de moto e vocês querem saber quantas cilindradas ela tinha.
Passo no terceiro em pouco tempo, para levantar orçamentos igual as empresas fazem com gastos altos inevitáveis.
- Então, tem que fazer uma coroa e...
- Dá licença, vou vender meu rim e já volto para fechar o tratamento.
- Não exagere vai!
- Vocês fazem carnê de tratamento dentário igual das Casas Bahia?
- Não sei quanto fica, vão te ligar. - ai dentista pião. Não sei o que é pior, tomar o susto deitada ou ser pega de surpresa depois na calada de uma distração qualquer, para depois sabermos que tem que hipotecar a casa e fechar os buracos da boca.
- Pô se tivesse uns solteiros para fazer escambo por favores sexuais...
Meu pai quer socar a revista da sala de espera em mim e tenho que avisar que é brincadeira.
- Do outro lado não moça, é um pouco menos.
Ele faz uma longa e didática explicação sobre a força que incide nos molares, a reação do dente, as quebraduras, como alimento mole tira os rachados de lugar. Lembro de uma professora ótima de física do ensino médio.
- Acho que já que chama coroa, devíamos fazer uma cerimônia, um ritual: adeus saldo bancário! O que acha doutor?
Ele se diverte. Devia negociar risadas por descontos.
Minha chefe até arrumou um mais barato, mas tem que pegar um jegue, um cipó e uma jangada para chegar lá.
Tenho ATM, ou seja, forço o maxilar dormindo. É difícil abrir a boca na cadeira deles: ela já é meio travada. Com os bonitões, ela se abre meio caindo o queixo, facilita.
Precisava descobrir o esquema de venda de óvulo da colega duma vizinha, daí dá para arrumar a boca, mas é meio debaixo dos panos, nada oficial. Catzo.
Não à toa a maioria dos brazucas tem boca zoada e quando brinco que se o pretê tiver emprego e dente já está de bom tamanho, meu primo diz que limo meio Brasil com estes pré requisitos.
Durmo com a placa sambando na boca e torcendo para esta noite a dita cuja não amanhecer longe da boca e eu com maxilar travado amanhã. Santa Apolônia, padroeira dos doutores do ziiimm, valei-me!

quarta-feira, 2 de julho de 2014

ET na Copa

Os jogos começam e eu pareço vir de Plutão. Não, não vi o passe do meia do Cuzuquistão. Ah é, o goleiro da Malásia era uma graça? Não faço ideia qual foi o placar entre o Nepal e o Quirquistão. Queria mesmo era fazer parte do protesto online Vai ter Cópula. Mas como diz a tia da minha prima "recebemos currículos, fizemos dinâmicas de grupos e... não tinham o perfil". Daí no primeiro jogo fui militar na casa da professora de canto:
- Croácia! Croácia!
Mas lá para as tantas fui arrebatada... Pelas pernas dos jogadores. Que Marcelo é aquele cambada? Ah, ele fez gol contra? Hum...
Nunca pintei a rua, coloquei bandeirinha, colori muro. Na melhor das hipóteses tive figurinhas dos jogadores da Suécia, que eram uma graaaaça, há muitos anos atrás. Mas nesta temporada, é como se trocasse de planeta me mantendo na Terra mesmo. Um dos poucos assuntos que não tenho um mísero comentário a fazer, junto com as "editorias" carros antigos e motos. Fico lá ouvindo e enfiando o pé na jaca em algum vinho ou cerveja escura, para acordar "corta pulsos" no dia seguinte.
No último jogo também, estava com boleiros da zona leste e fiz uma social nos bares do Itaquerão, já que meu bolso não comportava ingressos na Arena e na educação não rolam "jabás" generosos como no jornalismo. Estranhei a comemoração europeia da Holanda: umas palmazinhas e pronto. Num dos gols na partida do Brasil também fui abduzida e comemorei. Não lembro o nível de álcool que foi necessário.
Cadernos de esporte sempre foram os que pulava, colocava na gaiola dos pássaros do meu pai ou usava de "banheiro" pro meu filho canino, o Bidu. Sempre "torci" fazendo pipoca da cozinha: basta acompanhar o ritmo da locução que quando fica mais exaltada, é batata: posso ir para a sala e rever o lance do gol um "porrilhão" de vezes, ouvir as análises - todo mundo é comentarista nato de "futibas", uma pena esse monopólio dos Galvão Bueno de sempre.
Trata-se de um talento para torcer não alimentado. Sou corinthiana não praticante: na barriga da minha mãe acompanhei ela pular quando o Timão levou um título e acabou com um "jejum" que se não me engano já durava 25 anos. Pois bem, quando ela parou de pular, eu comecei e a dona Lu passou mal. Ao nascer, meu pai comprou uma blusinha do Corínthians antes de saber meu sexo. Mas nunca me levou em estádio, oras, como podia me tornar "Gaviões" roxa? Só ano passado que colegas de trampo me levaram para ver Ponte Preta com uns argentinos no Pacaembu e gamei: é um esporte que faz sentido no estádio. Muito embora seja mais batuqueira que torcedora e só não me rendi ao ziriguidum dos hermanos por medo de sair alguma briga e estar longe dos meus acompanhantes.
Chutando pau na barraca recentemente, no último jogo me rendi ao atraso de sono e capotei. Sonhei com olas, ouvindo a vizinhança torcer enlouquecida. No próximo também estou curiosa pra conferir o movimento na Vila Madalena, que está caindo nas graças da "gringaiada", mas...com quem jogaremos mesmo?
Me sinto na pele da eterna incompreendida, quando ouço: "mas nem na Copa"?, ao confessar que não consegui cair de amores pelo esporte mais passional do País, parece quando recuso carne por ser vegetariana e tenho que ouvir: "nem peixe"?

domingo, 29 de junho de 2014

Coxinização de uma metida a alternativa

Ver os militantes mais xiitas cutucando os caretas via Internet com as imagens de coxinhas cheias de plaquinha reivindicando o supérfluo rendia risadas e uma certeza meio petulante de não fazer parte daquele universo: imagine, politizada de carteirinha, estudei com a filha do Lula, tive pai sindicalista, morei a vida toda ao lado do Heliópolis, não estou aí nessa “fornada gordurosa” gravitando em torno do próprio umbigo. E ainda tinha feito jornalismo para mudar o mundo: pausa para gargalhadas.
Recentemente passando uma tarde com amigos de histórico escolar em colégios públicos, um que me considera desertora por ter migrado da escola estadual para a particular, fico com o rabinho entre as pernas quando brincam:
- Você podia ter sido uma baita coxinha nascendo em São Caetano, mas caiu na casa dum sindicalista, olha que carma bom!
Há quase uma semana venho refletindo nessa bipolarização política da direita e esquerda extremistas. Os menos exaltados também acreditam aqueles que se veem politizadíssimos mas enxergam uma revolução nestes países em que a queda do antigo poder acarretou uma perseguição aos dialetos regionais tradicionais uma espécie de “ursinhos carinhosos vermelhos”.
Fui admitindo minhas falhas nos últimos tempos: antigamente qualquer começo de papo político significada para mim uma subida ao palanque que tenho na garganta e uma prosa de varar madrugadas. Quando o PT deu uma flexibilizada, como não agüentava mais ouvir os colegas apontar o dedão no rosto e acusar: “e agora esquerda, vai defender o que”? E fui usando a técnica de uma tia, mudando de assunto até brochar com essas conversas. Daí retomo contato com quem não parou a militância, seja virtual ou pessoalmente. Admito: sou meio coxinha ursinhos carinhosos.
Uma vez recebi em casa uma parceira de trabalho da maior favela de São Paulo, por proteção mesmo e depois soube que quando ela dizia onde estava morando os vizinhos do Heliópolis consideravam que ela “tinha virado boy”. É dentro deste bairro, num condomínio de 48 prédios cheio de árvores, parque para criança e terceira idade, sou meio privilegiada. Ah, uma coxinha vegetariana meio fantástico mundo de Bob, vá!
Durante muito tempo fui viciada nesses cafés com canela, chantili, tanta coisa que meu pai acusava:
- Isso aí já é uma torta!
Mudando da comunicação pra educação vi que era uma esfregada desnecessária de dinheiro na parece: minha amiga que limpa aqui em casa traz uma misturinha idêntica aos melhores capuccinos da cidade. Semi coxinha gourmet,digamos... A paixão pelos naturebas preço único ou por prato também não colabora. Coxinha aspirante a vegana.
Domar cabelo poim oim oim: não vem dizer que quem tem cabelo liso sabe o que é “bad hair Day”, isso é coisa de quem dorme com o dito cujo lindamente enrolado e acorda meio Medusa, esticados, chapados ou tobogãs de nascença nem sabem do que se trata. Até assentamos com um hidratante e óleo de ponta simples, mas o ativador de cachos precisa ser contrabando de profissional, produto de salão, para nos sentirmos fazendo propaganda de produtos para cacheados. Coxinha peruete.
Adoro o forró e samba aqui da comunidade ao lado, mas fico sem graça de atravessar meia dúzia de ruas e ir lá dançar com eles, não sei, ia com o ex mano e dá uma rara timidez de chegar assim na cara larga. Coxinha me engana que sou tímida.
Amo roupinhas meio alternativas, estilo novos estilistas da feirinha do Center 3 de domingo na Paulista, praça Benedito Calixto e por aí vai. Nada muito acessível. A sorte é ganhar muito disso das tia e prima generosas, de bom gosto e consumistas. Coxinha estilosa.
Ah, mas tem uma militância no Movimento das Mulheres do Heliópolis, uma circulação pelas peças do Sesc, Centro Cultural e Sesi, filmes da sessão popular do Frei Caneca, inexplicável conexão ancestral com centros de umbanda e candomblé, sangria desatada por trilha, cachoeira em quebrada escondidinha na natureza, tara por brechós... Empate técnico!
Sei não, estou mais para bolinho de queijo heim? Combina até com essas espinhas retardatárias de pele oleosa...

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Biblioterapia

A gente se sente meio fora desse mundo e corre para as prateleiras, fica lá acolhida, conhecendo outros escritores e dando uma de "Lucas Silva e Silva", como diz minha colega de trabalho. No caso de dúvida, leio. Em caso de desentendimento não esperado, também. Eles sempre me entenderam e me carregaram no colo, os livros. Ali, nem incomoda muito esta disforia de não pertencer ao mundo, ao trabalho, aos amores ou à família. Até a alergia ao pó deles se releva. Os antigos arquivamentos, iguaizinhos à minha época de rata de biblioteca, em que, como o primo Ignácio de Loyola Brandão, só não lemos as enciclopédias, ele em Araraquara, eu em São João Clímaco e Vila Mariana. Precisando rir, Luis Fernando Veríssimo. Chorar, o pai dele. Voltar à infância Ligia Bojunga. Me surpreender, Miriam Leitão para crianças. Reiventar, Manoel de Barros. Nem os arquivamentos novos causam estranhamento. Deixa a literatura carregar no colo, que desde a infância ela sempre foi irmã, namorado, irmão, bicho de estimação e o que mais precisasse.
Descobri qual a razão dos meus pais e madrinha reclamarem que quando me entretinha numa obra (e mais adulta, com revistas), não tinha Cristo que entrasse naquele universo ou me resgatasse dele. Atendendo outro nerd litérário como eu:
- Você vai devolver ou emprestar esses?
Tu tu tu...
- Quer levar o gibi também?
Silêncio constrangedor do lado de lá do balcão.
- Vai pra aula ou sua mãe vem te pegar?
Vácuo.
O mundo das letras é sempre muito mais acolhedor que o do lado de cá. É possível entrar na fantasia do autor. Ou criar a nossa, como quando desenhava e inventava minhas histórias. Meu amigo capitalizava melhor e até as revendia. Eu sentava em cima das antigas e mirabolava novas. Estes dias quis encontrar uma feita sob medida pro meu primo, antigo baterista, mas desconfio que meus pais não guardaram tudo entre as duas ou três mudanças dos últimos anos.
O ex brinca que sou igual um galozinho de desenho animado, que tinha grandes óculos e também vivia atrás dos livros. Não lembro desse personagem, pode não ser da minha época, sabe-se lá. Mas pagava para não largar os livros. E por isso vivia em greve de fome, não queria deixar de ler para comer. Sempre achei que os médicos estavam certos, que se tivesse comida em casa, não precisavam insistir, uma hora comeríamos, mais cedo ou mais tarde procuraríamos alguma coisa. Que ilusão! Minha amiga, cuja mãe deve ter acreditado nestes médicos otimistas, deve ter desistido de insistir, mas recentemente num exame para se exercitar, esta amiga estava subnutrida. Aliás a maioria dos grevistas de fome da infância da geração de 30 e pouco virou vegetariano adulto, mas isso é assunto para outro post.
O bacana é que este ambiente está me reativando o sonho de ser escritora. Sei que já publiquei algumas páginas em coletâneas aqui e ali. Mas como filha única típica queria "um livro para chamar de meu". E vamos, que o barco não para. Nem em feriado!

domingo, 8 de junho de 2014

"Planeta Terra Chamando..."

A literatura me carregou para uma lembrança boa: ir à casa da madrinha de caderno, lápis, canetinha... Brincar com os primos, meus manos adotados até hoje, mas a tia lembrar que a visita terminava registrada no meu caderno, com o título de "minha festa na madrinha". Ligia Bojunga me catapultou bonito pros tempos de Vila Industrial e Guarulhos. Talvez por este ano não ter conseguido ligar pra tia no dia das mães, como costumo fazer com as irmãs do meu pai, que muitas vezes fizeram as vezes de na minha infância.
Pouco depois foi o Marcelo Vassalo, com sua fantatiosa lembrança de brincadeira na praia com o pai que me remeteu aos túneis que cavei com estes mesmos primos, na reforma ou construção da casa da madrinha, quando brincávamos com aqueles bonequinhos "secos por uma guerra sem motivo" e por fim eles terminavam me enterrando num buracão de areia. Era uma luta inglória uma mulher contra três irmãos, que só foram brigar adultos, quando o fundamentalismo religioso respingou entre os três mosqueteiros da minha infância.
Devolvendo Mirna Pinsky às prateleiras lembrei que na infância depois de devorar algum livro dela mandei uma carta, fui respondida e ando revisitando eletronicamente este hábito de querer entrar em contato com o autor, por isso também escrevi ao André Neves depois de ler Tom, um dos indicados como melhores livros de 2013 pela revista Crescer. Fui atraída pelo apelido do meu melhor amigo, captei nas entrelinhas um significado pro personagem ser tão encimesmado, depois os desenhos me levaram pra outro entendimento.
Me refestelando nas prateleiras de biblioteca infanto juvenil, dou razão à ex chefe: os designers e desenhistas é que são felizes! Nostalgia de não ter parado de fazer histórias em quadrinhos na infância, talvez. Esse "paraisinho" não tem o cheiro daquelas bibliotecas em que esqueci o tempo e preenchi muitos cartões de empréstimo na infância. Nem os livros infantis de quando sonhava em ser desenhista tinham desenhos tão ricos. Que milagre! Alguma coisa não era melhor na minha época...
Levantei linhas mais lúdicas da Miriam Leitão (que quem diria, além de analisar o petróleo do barril Brent, também defende os pássaros), Graciliano Ramos (nem só de Memórias do Cárcere vive um grande escritor) e Marina Colasanti (associei Breve História de um Pequeno Amor ao Veludinho que li na infância, mas louvado seja Deus, encontrei um final menos chororô).
Zeca era Diferente nos alivia da síndrome de ser a ovelha vermelha da família, até dá razão à amiga que consolava: "num mundo doente, não é mérito nenhum se encaixar nele". E Anjo do Lago tranquilizou a alma aflita carente de uma fé que estão olhando e cuidando de nós, nossos sonhos e missões, já que só enxergamos umas casas do tabuleiro, mas a providência divina vê o jogo inteiro.
Uma Chapeuzinho Vermelho fez rir alto - não muito bem vindo em ambiente de concentração e estudos - com a malandragem brazuca da clássica personagem das histórias ouvidas ao rodapé da cama, antes de pegar no sono. E aqueles desenhinhos com ar de fugidos da pré infância, que alento visual - e esperança à vista das minhas historinhas querendo sair da gaveta.
A negociação e saída criativa encontrada no impasse dos personagens de A Ponte dá espaço à metáfora de aplicação na vida: sempre podemos bolar uma resolução impensada que auxilie todos sem prejudicar as necessidades dos envolvidos.
Finalmente mergulhar na história que não nos contaram em 1822 foi reviver a encenação de Enfim, o Paraíso e rir lembrando da minissérie O Quinto dos Infernos. Começamos em várzea, como podemos fugir ao estigma de praticamente ter comprado a independência, de pouco conhecer a participação da heroína nordestina Quitéria e Leopoldina na independência e da "guerra" por nos separarmos de Portugal ter sido passada como um acontecimento pacífico?
Vô Renério e suas memórias encadernadas, primo Ignácio de Loyola Brandão e demais ratos das letrinhas familiares têm razão: as prateleiras, páginas impressas e desenhos evocativos da imaginação são as melhores companhias! O povo tem que me convocar pra bater cartão, pois como na pré infância, teimava em não deixar de ler ou escrever nem pra comer ou dormir...

domingo, 18 de maio de 2014

Uma jornalista na Sala de Aula

Como era de se esperar, as primeiras vezes foram trágicas. Tudo que consegui foi levantar alguns nomes, ver o que tinham trabalhado, do que sentiam falta, ensaiar um ou outro jogo cênico que envolvesse o desenvolvimento da liguagem e ouvir:
- Prô, dá aula do seu jeito.
No fechamento de notas e faltas, com matéria prima dos professores que me antecederam, saí com dores no pescoço e ombro e sentindo falta de fechar matéria - já que para isso tinha que lidar com mais palavras e menos números. Avisei a coordenadora:
- Não sei fazer contas!
- Nada que uma calculadora não resolva.
Ensaiei uma dança de roda com "tem areia no mar...areia"! Umas improvisações com teatro do oprimido contra a violência simulando brigas em trabalho ou escola depois duma matéria sobre alunas se pegando no pau dentro do ensino público no Fantástico. Discuti à exaustão até chegarmos em soluções pacíficas, pois quando questionava como resolver congelando as cenas que propunham, o que a maioria sugeria era:
- A gente grita: porrada!
Também pesquisei funk político do MC Da Leste para tentar criar uma proximidade com eles. Descobri que usávamos parte da letra deste músico nas passeatas ano passado, antes de virarem a reedição da "marcha com Deus pela família e propriedade". Vi orgulhosa os gracinhas da oitava interpretarem o gigante acordando, os policiais batendo nos manifestantes, a Dilma se transmutar em vários aspirantes a atores e eles cantarem o hino nacional. Até tirei foto e quis postar, mas do que me lembro de TV precisava de autorização de imagem, com menor é mais complicado e...passou.
No começo pedia para afastarem as cadeiras pois faríamos teatro, mas depois, quando terminava a chamada e levantava o olhar, já tinham deixado o centro da sala vago. Não escapa uma informaçãozinha deles, pois no primeiro ou segundo dia, quando contei que também fiz matéria e pedi que não pendurassem nas janelas, justificavam:
- Prô está pegando fogo na favela, você não é jornalista?
Consegui contar a lenda indígena de surgimento da noite e fazê-los reinterpretá-la com minha locução e estudantes das sextas fazendo as vezes dos índios, da Boiúna Cobra Grande, dos macaquinhos, do barco, do caroço de tucumã... Não entendia muito quando entrava nestas turmas e eles comemoravam, pois era dificil fazê-los se envolverem nas propostas. Mas ouvia aqui e ali que era a melhor professora, que era outro nível, que adoravam minha aula, pediam abraço, beijo, pra eu levá-los para outra sala e não sei o que mais - volta e meia queria brincar:
- Ah, vocês devem dizer isso para todas!
Fui tentando fazer um trabalho budista para não inflacionar muito o ego e devo sinceros agradecimentos à sangha (grupo de amigos budistas) do CEBB (onde medito atrás do Shopping Paulista), mas especialmente ao meu irmão que abuso de sua experiência, comida, gata, paciência e companhia semanalmente. Tinha muitas vezes a impressão de só fazer figuração lá na frente deles, mas ele garantia:
- Você passará feito fogo pela alma deles. Pelo bem e pelo mal.
Mas acho que os adolescentes acabaram fazendo o mesmo comigo. No ensino médio logo de cara pesquei a pista, acertei a mão e levei vídeos do Banksey, Gêmeos e Basquiat, pois trabalharam grafite, embora tenham me mostrado mandalas (no alto da minha ignorância em arte de rua, nunca vi estas duas modalidades de artes visuais conectadas).
Levei lá um projeto para contarmos as histórias dos estudantes, da escola e do bairro, pois achava que não nos entendíamos de não conhecer o que cada um vivia e também para trabalhar corpo, voz explorando a "contação" (já que viviam criticando o teatro, alegando vergonha ou que não sabiam, nem queriam), apropriação do espaço público e aquele movimento que não só a história oficial é relevante, mas também a sabedoria e experiência popular (pegando um pouco carona do que conheci sobre o Museu da Pessoa). Diziam não saber fazer. A sagitariana porra louca aqui foi de figurino, peruca, foto, livro, microfone, bolinhas sonoras, apito, contou histórias, deixou os meninos deitarem e rolarem de madeixas loiras de mentira, perdeu e reaveu o livro de Câmara Cascudo mas... Depois de uma semana, devo ter lido uma dúzia de histórias, se muito. Envolvido um ou dois professores na proposta. E depois de uma bola de papel no rosto, uma alergia monstro de pó de giz e um tapa no bumbum (que tinha vergonha de partilhar, parecia que a culpa era meio minha, muito embora sempre tenha ido entre maloqueira e informal, nem resvalando os visuais "Diana caçadora", não que isso fosse justificar a invasão, mas decotes e justos passaram longe nas minhas idas e vindas, vale o registro). Comecei a pensar:
- Paulo Freire não devia ter salas com 40 alunos quando escreveu seus livros.
Me ouvindo dizer uma ou outra barbaridade em sala de professor e engasgando com outras escutadas, me pareceu que não conseguiria dar todos limites que demandavam, que era "boazinha" demais para a malandragem deles, que até inventava aulas criativas, mas seria quase uma missão impossível avaliá-los dentro dessa visão de que não existe "arte errada", que meu emocional sucumbia à impossibilidade de "tourear" os preconceitos e dores que não conseguia aplacar deles, que ficava inacreditavelmente sem energia administrando as picuinhas entre alunos, cortinas, portas, cadeiras, mesas, celulares, malas, que alguma coisa que ainda não sei definir em mim não era "parruda" o suficiente para nadar contra a maré, que.. a miragem que surgiu foi um barco em que me meti a mudar de rumo e botar fé. Que meu coaching ficará feliz de me ver pensando a partir da prosperidade, apesar do meu histórico contrário.
E como tuuuudo neste samsara de meu Deus é mesmo impermanente, a alegria durou um tantinho assim ó: fui falar com os colegas de trabalho (que em sua maioria eram bacanas, mas como diz meu irmão, 90% do tempo ficamos com os alunos e entre 400, bem 60 se interessavam pelos meus vídeos e pedidos de jogos, vivências, improvisações...). Não queria ver os estudantes na saideira, só que acabei cruzando. Com aquela cara de tacho. A culpa é sempre uma perseguidora das mulheres. Temos escapatória? Não me senti apta às condições que não colaboravam... Acabo chegando à conclusão de que aqueles que mais precisam sempre ficam na necessidade, pois nos rendemos às condições atraentes. Que minha prima está certa, o capitalismo se apropria de tudo, inclusive de um sonho meio idealizado à altura da síndrome de Peter Pan da sagitariana que ficou meio sem graça com o que ouviu de amigos da área nos últimos dias. O estofo é frágil, mas como diz meu pai, a culpa não é exatamente minha, não fui bem eu que o produzi lá "nos meus primórdios", venho tentado melhorá-lo com umas meditações, trabalhos artísticos, voluntários e apoios aqui e ali, mas... cismei que já que aconselhavam "tocar o terror" e me via incapaz disso, sinto a educação pública como uma saara que já devia receber professor tarimbado, macaco velho, talvez de malandragem à altura ou acima dos estudantes. Tinha uma aflição absurda quando me virava para escrever a lição e os vídeos na lousa e quando voltava enxergava lixos voando e fazia "uma torcida organizada" para que não pegasse em ninguém, já que raramente percebia quem começava as barbaridades, só encontrava o acidente a caminho ou já finalizado. Palpito que só devia entrar quem tem visão de lince, sabe? Após um mês e meio tinha começado a ser chatinha também, confiscar figurinhas, farinha que queriam atirar numa aniversariante e desmanchar roda paralela à aula que reeditava aquela velha brincadeira "pera, maçã ou salada mista"? E pelo rosto roxo da menininha não foi difícil saber quem tinha sido beijada enquanto explicava diferenças entre teatro de rua, de empresa e no palco italiano. Ninguém pode dizer que os subestimei: levei vídeo da Marina Abramovic, Balei na Curva (que alegria dar as primeiras informações da ditadura), Pina Bausch... Quem se aproximou e conferiu tem aí uma "pochete cultural" para se entrosar com os mais interessantes que cruzar futuramente. Mas confesso que pegava leve demais nas perguntas depois de exibir e explicar o que selecionava. Tinha medo de não saber lidar com dificuldades mais ou menos alheias à minha matéria (de compreensão e redação, por exemplo). Apesar dos desabafos mútuos recorrentes, ouvia lá no fundo um apito: não me via naquilo a médio e longo prazo. Só que tive dor no coração de abandonar o barco. Pelos abraços, elogios, beijos, perguntas, risadas, ideias não divididas de excurção com estudantes na Cantareira e grupo de apoio às dúvidas típicas da idade, pelos incentivos, ansiados cafés (meu Deus, como se bebe pouco na sala dos professores: eu o procurava feito cafeinômaca ex repórter que espirrava bebia, ia ao banheiro bebia e emendava a água no café), pelos colírios que ensinavam física, pelas gracinhas da Lu, Nívea (essa pérola até os fazia silenciarem), Val e Viviane, pelo sonhozinho praticamente impossível do projeto da sala de leitura, pelas ajudas estudantis com os cabos na sala de vídeo, pelos que ensinei e arrancavam o material da minha mão para levar até a outra sala, pelos interessadinhos Natalia, Gabriel, Aldry, Arthur, Gabriela, Keren, Jenny, Geovana, Mayumi, Beatriz... Pena que não lembrarei de todos (isso pq diz a lenda que tenho boa memória...). Que falta fará o grupo Improviso, que começou a fazer teatro do absurdo sem nem conhecer Esperando Godot! Meu irmão bronqueou que quis ficar "no ponto" em 45 dias. Nem é bem isso. Sentia um pouco que quase nada interessava a maioria: vídeo, performance da professora, livro chamativo, a despeito das minhas dores nas costas levando, levantando e revisando material. Mas que bênção aquela liberdade de fazer diferente em sala com eles. E que ignorância da fonte que ouvi em pauta educacional condenando diretor não ver aula ou o governo só reconhecer por tempo de serviço e não resultado conquistado. Diretoria tem pai caçando aluno para atender, patrimônio sendo depredado, material faltando, professor doente, bomba estourando para administrar, falta de eventual, papelada para por em ordem, reuniões e capacitações para planejar, cumprir, realizar. Vai quando, de madrugada conferir aula do professor? E por tempo de serviço o professor não tem que ser reconhecido, tem que ser canonizado. A médio e longo prazo me pareceu  rolo compressor demais: se sucumbe à falta de recursos, de disposição, de reconhecimento, de envolvimento, de interesse... Tenho uma aflição encroada das caricaturas do funcionalismo público que ouvimos mais que na realidade encontramos. É que uma aqui e outra ali chocam. A princípio não abalam. Mas andorinha sonhando, planejando, experimentando, pesquisando e propondo sozinha faz verão? A animada da professora da biblioteca disse que depois de ler o que fiz e escrevo, achou que não ficaria. Tem horas que me soa um carimbo: "arregou iniciante". Há coisas que só entenderei distanciada mesmo. Agora é tudo turvo, nebuloso, expectativa e...gosto de saudade e sonho abortado. Desculpa educação pública. Foi mal.