Como era de se esperar, as primeiras vezes foram trágicas. Tudo que consegui foi levantar alguns nomes, ver o que tinham trabalhado, do que sentiam falta, ensaiar um ou outro jogo cênico que envolvesse o desenvolvimento da liguagem e ouvir:
- Prô, dá aula do seu jeito.
No fechamento de notas e faltas, com matéria prima dos professores que me antecederam, saí com dores no pescoço e ombro e sentindo falta de fechar matéria - já que para isso tinha que lidar com mais palavras e menos números. Avisei a coordenadora:
- Não sei fazer contas!
- Nada que uma calculadora não resolva.
Ensaiei uma dança de roda com "tem areia no mar...areia"! Umas improvisações com teatro do oprimido contra a violência simulando brigas em trabalho ou escola depois duma matéria sobre alunas se pegando no pau dentro do ensino público no Fantástico. Discuti à exaustão até chegarmos em soluções pacíficas, pois quando questionava como resolver congelando as cenas que propunham, o que a maioria sugeria era:
- A gente grita: porrada!
Também pesquisei funk político do MC Da Leste para tentar criar uma proximidade com eles. Descobri que usávamos parte da letra deste músico nas passeatas ano passado, antes de virarem a reedição da "marcha com Deus pela família e propriedade". Vi orgulhosa os gracinhas da oitava interpretarem o gigante acordando, os policiais batendo nos manifestantes, a Dilma se transmutar em vários aspirantes a atores e eles cantarem o hino nacional. Até tirei foto e quis postar, mas do que me lembro de TV precisava de autorização de imagem, com menor é mais complicado e...passou.
No começo pedia para afastarem as cadeiras pois faríamos teatro, mas depois, quando terminava a chamada e levantava o olhar, já tinham deixado o centro da sala vago. Não escapa uma informaçãozinha deles, pois no primeiro ou segundo dia, quando contei que também fiz matéria e pedi que não pendurassem nas janelas, justificavam:
- Prô está pegando fogo na favela, você não é jornalista?
Consegui contar a lenda indígena de surgimento da noite e fazê-los reinterpretá-la com minha locução e estudantes das sextas fazendo as vezes dos índios, da Boiúna Cobra Grande, dos macaquinhos, do barco, do caroço de tucumã... Não entendia muito quando entrava nestas turmas e eles comemoravam, pois era dificil fazê-los se envolverem nas propostas. Mas ouvia aqui e ali que era a melhor professora, que era outro nível, que adoravam minha aula, pediam abraço, beijo, pra eu levá-los para outra sala e não sei o que mais - volta e meia queria brincar:
- Ah, vocês devem dizer isso para todas!
Fui tentando fazer um trabalho budista para não inflacionar muito o ego e devo sinceros agradecimentos à sangha (grupo de amigos budistas) do CEBB (onde medito atrás do Shopping Paulista), mas especialmente ao meu irmão que abuso de sua experiência, comida, gata, paciência e companhia semanalmente. Tinha muitas vezes a impressão de só fazer figuração lá na frente deles, mas ele garantia:
- Você passará feito fogo pela alma deles. Pelo bem e pelo mal.
Mas acho que os adolescentes acabaram fazendo o mesmo comigo. No ensino médio logo de cara pesquei a pista, acertei a mão e levei vídeos do Banksey, Gêmeos e Basquiat, pois trabalharam grafite, embora tenham me mostrado mandalas (no alto da minha ignorância em arte de rua, nunca vi estas duas modalidades de artes visuais conectadas).
Levei lá um projeto para contarmos as histórias dos estudantes, da escola e do bairro, pois achava que não nos entendíamos de não conhecer o que cada um vivia e também para trabalhar corpo, voz explorando a "contação" (já que viviam criticando o teatro, alegando vergonha ou que não sabiam, nem queriam), apropriação do espaço público e aquele movimento que não só a história oficial é relevante, mas também a sabedoria e experiência popular (pegando um pouco carona do que conheci sobre o Museu da Pessoa). Diziam não saber fazer. A sagitariana porra louca aqui foi de figurino, peruca, foto, livro, microfone, bolinhas sonoras, apito, contou histórias, deixou os meninos deitarem e rolarem de madeixas loiras de mentira, perdeu e reaveu o livro de Câmara Cascudo mas... Depois de uma semana, devo ter lido uma dúzia de histórias, se muito. Envolvido um ou dois professores na proposta. E depois de uma bola de papel no rosto, uma alergia monstro de pó de giz e um tapa no bumbum (que tinha vergonha de partilhar, parecia que a culpa era meio minha, muito embora sempre tenha ido entre maloqueira e informal, nem resvalando os visuais "Diana caçadora", não que isso fosse justificar a invasão, mas decotes e justos passaram longe nas minhas idas e vindas, vale o registro). Comecei a pensar:
- Paulo Freire não devia ter salas com 40 alunos quando escreveu seus livros.
Me ouvindo dizer uma ou outra barbaridade em sala de professor e engasgando com outras escutadas, me pareceu que não conseguiria dar todos limites que demandavam, que era "boazinha" demais para a malandragem deles, que até inventava aulas criativas, mas seria quase uma missão impossível avaliá-los dentro dessa visão de que não existe "arte errada", que meu emocional sucumbia à impossibilidade de "tourear" os preconceitos e dores que não conseguia aplacar deles, que ficava inacreditavelmente sem energia administrando as picuinhas entre alunos, cortinas, portas, cadeiras, mesas, celulares, malas, que alguma coisa que ainda não sei definir em mim não era "parruda" o suficiente para nadar contra a maré, que.. a miragem que surgiu foi um barco em que me meti a mudar de rumo e botar fé. Que meu coaching ficará feliz de me ver pensando a partir da prosperidade, apesar do meu histórico contrário.
E como tuuuudo neste samsara de meu Deus é mesmo impermanente, a alegria durou um tantinho assim ó: fui falar com os colegas de trabalho (que em sua maioria eram bacanas, mas como diz meu irmão, 90% do tempo ficamos com os alunos e entre 400, bem 60 se interessavam pelos meus vídeos e pedidos de jogos, vivências, improvisações...). Não queria ver os estudantes na saideira, só que acabei cruzando. Com aquela cara de tacho. A culpa é sempre uma perseguidora das mulheres. Temos escapatória? Não me senti apta às condições que não colaboravam... Acabo chegando à conclusão de que aqueles que mais precisam sempre ficam na necessidade, pois nos rendemos às condições atraentes. Que minha prima está certa, o capitalismo se apropria de tudo, inclusive de um sonho meio idealizado à altura da síndrome de Peter Pan da sagitariana que ficou meio sem graça com o que ouviu de amigos da área nos últimos dias. O estofo é frágil, mas como diz meu pai, a culpa não é exatamente minha, não fui bem eu que o produzi lá "nos meus primórdios", venho tentado melhorá-lo com umas meditações, trabalhos artísticos, voluntários e apoios aqui e ali, mas... cismei que já que aconselhavam "tocar o terror" e me via incapaz disso, sinto a educação pública como uma saara que já devia receber professor tarimbado, macaco velho, talvez de malandragem à altura ou acima dos estudantes. Tinha uma aflição absurda quando me virava para escrever a lição e os vídeos na lousa e quando voltava enxergava lixos voando e fazia "uma torcida organizada" para que não pegasse em ninguém, já que raramente percebia quem começava as barbaridades, só encontrava o acidente a caminho ou já finalizado. Palpito que só devia entrar quem tem visão de lince, sabe? Após um mês e meio tinha começado a ser chatinha também, confiscar figurinhas, farinha que queriam atirar numa aniversariante e desmanchar roda paralela à aula que reeditava aquela velha brincadeira "pera, maçã ou salada mista"? E pelo rosto roxo da menininha não foi difícil saber quem tinha sido beijada enquanto explicava diferenças entre teatro de rua, de empresa e no palco italiano. Ninguém pode dizer que os subestimei: levei vídeo da Marina Abramovic, Balei na Curva (que alegria dar as primeiras informações da ditadura), Pina Bausch... Quem se aproximou e conferiu tem aí uma "pochete cultural" para se entrosar com os mais interessantes que cruzar futuramente. Mas confesso que pegava leve demais nas perguntas depois de exibir e explicar o que selecionava. Tinha medo de não saber lidar com dificuldades mais ou menos alheias à minha matéria (de compreensão e redação, por exemplo). Apesar dos desabafos mútuos recorrentes, ouvia lá no fundo um apito: não me via naquilo a médio e longo prazo. Só que tive dor no coração de abandonar o barco. Pelos abraços, elogios, beijos, perguntas, risadas, ideias não divididas de excurção com estudantes na Cantareira e grupo de apoio às dúvidas típicas da idade, pelos incentivos, ansiados cafés (meu Deus, como se bebe pouco na sala dos professores: eu o procurava feito cafeinômaca ex repórter que espirrava bebia, ia ao banheiro bebia e emendava a água no café), pelos colírios que ensinavam física, pelas gracinhas da Lu, Nívea (essa pérola até os fazia silenciarem), Val e Viviane, pelo sonhozinho praticamente impossível do projeto da sala de leitura, pelas ajudas estudantis com os cabos na sala de vídeo, pelos que ensinei e arrancavam o material da minha mão para levar até a outra sala, pelos interessadinhos Natalia, Gabriel, Aldry, Arthur, Gabriela, Keren, Jenny, Geovana, Mayumi, Beatriz... Pena que não lembrarei de todos (isso pq diz a lenda que tenho boa memória...). Que falta fará o grupo Improviso, que começou a fazer teatro do absurdo sem nem conhecer Esperando Godot! Meu irmão bronqueou que quis ficar "no ponto" em 45 dias. Nem é bem isso. Sentia um pouco que quase nada interessava a maioria: vídeo, performance da professora, livro chamativo, a despeito das minhas dores nas costas levando, levantando e revisando material. Mas que bênção aquela liberdade de fazer diferente em sala com eles. E que ignorância da fonte que ouvi em pauta educacional condenando diretor não ver aula ou o governo só reconhecer por tempo de serviço e não resultado conquistado. Diretoria tem pai caçando aluno para atender, patrimônio sendo depredado, material faltando, professor doente, bomba estourando para administrar, falta de eventual, papelada para por em ordem, reuniões e capacitações para planejar, cumprir, realizar. Vai quando, de madrugada conferir aula do professor? E por tempo de serviço o professor não tem que ser reconhecido, tem que ser canonizado. A médio e longo prazo me pareceu rolo compressor demais: se sucumbe à falta de recursos, de disposição, de reconhecimento, de envolvimento, de interesse... Tenho uma aflição encroada das caricaturas do funcionalismo público que ouvimos mais que na realidade encontramos. É que uma aqui e outra ali chocam. A princípio não abalam. Mas andorinha sonhando, planejando, experimentando, pesquisando e propondo sozinha faz verão? A animada da professora da biblioteca disse que depois de ler o que fiz e escrevo, achou que não ficaria. Tem horas que me soa um carimbo: "arregou iniciante". Há coisas que só entenderei distanciada mesmo. Agora é tudo turvo, nebuloso, expectativa e...gosto de saudade e sonho abortado. Desculpa educação pública. Foi mal.
Quando você chegou, e pude ouvir ouvi-la em uma de nossas ATPCs, fiquei tão feliz!! Alguém com tanta vida pulsando ainda...pensei. Mas quando pude vê-la atuando em sala de aula, pensei: "Sua passagem será breve". "Que seja breve enquanto dure.Disse a mim mesma. Mas foi breve demais...nem mesmo pudemos dividir nossas paixões pela leitura, pelo teatro, pela arte, enfim. O seu texto deu-me a certeza do quanto é importante fazermos o que acreditamos, Francine.Ensinar e aprender com estes alunos é o que sei fazer, é o que gosto. Suas paixões são várias: o palco, a escrita, a contação de histórias. Todas elas passam pela educação. Nem sucesso desejo, pois sei que ele já é parte de tudo que faz.
ResponderExcluirSó peço isso: Uma postagem sua no blog da biblio e a publicação deste texto maravilhoso. Posso multiplicá-lo lá no blog e mural?
Seu terrorismo poético já é seguido em nosso blog. Outros alunos poderão conhecer e inspirar-se em sua escrita, suas artes, seu talento.
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