quarta-feira, 4 de julho de 2012

Saudosismo repentino


Não foi à primeira vista que já nos tornamos amigas de fé, irmãs camaradas. No finado pré, mas informal, sem tanta obrigação de alfabetizar naquela época. A ruivinha, na ocasião ainda mais quieta, chegou um dia e encontrou as amiguinhas com uma morena de cabelo quilométrico, que renderia anos mais tarde o apelido Paraguaia, dado pelo pai da menos espoleta, por inspiração da cantora Perla. Foi quase “tocada” do circulozinho de conversa pela forasteira: "Você não é minha amiga!"
"Você é que não é minha. Já estava com a amizade delas antes de você chegar". – a ruiva não se fez de rogada e devolveu na mesma facilidade infantil de arrumar justificativa para tudo.
"Ah... Então você é minha amiga também". finalizou a morena.
E pensar que anos mais tarde, continuariam amigas. Além do pré, fariam ainda a faculdade, escolhida estrategicamente: a ruiva quando viajava com os pais apontava o prédio da Abril e dizia: "Vou trabalhar aqui". Seus pais queriam saber "Mas o que você vai fazer aí menina?" Ainda não sabia o nome, mas já previa: "Escrever na revista".
Com a morena foi diferente: ela acompanhava com a mãe o noticiário da TV para saber das greves das montadoras e ter alguma informação do pai preso na fábrica:"Mãe quando eu crescer vou fazer igual essa moça aí do microfone"!
Quem diria que ela viraria marqueteira e até aula de educação física daria. Mas fizeram jornalismo juntas. E um dos estágios mais divertidos que a ruiva faria mais tarde seria pelas mãos da morena, numa rádio FM, em que ganharia ingresso para um show do Djavan e esnobaria as duplas sertanejas que visitavam a outra emissora do grupo, pois fazia questão de não reconhecer quem cantava “uma deusa, uma louca, uma feiticeira”.
A ruiva brincava que quando estavam com pressa de atravessar a rua, podiam por a morena para parar o trânsito e agilizar a travessia. Ganhavam caronas divertidas para o cursinho: do pai, que tinha um alarme “que nem o dono o automóvel conseguia tirá-lo do lugar, imagine o bandido”. É, tiveram que empurrar carro juntas.
Melhor seria na época da faculdade, em que um colega impagável as levava com sua picape, aquele carro conhecido como “marmita” em que você só carrega quem come e as duas iam no bagageiro, se cobrindo com uma capa de couro que protegia a parte traseira, pois tinham que “atravessar o portal do tempo”, de São Paulo para “São Bernóia”, onde faz um frio digno de área de manancial – será pela presença da Billings lá?
Brincavam que a morena enxergava fundo nos homens, pois sempre achava os baixinhos, feios e pobres uma graça. Sei lá, para ela inteligência e bom humor  eram mais que afrodisíacos.
Tentaram frequentar juntas o centro espírita local, extremamente procurado por pessoas de todas as fés, onde anos mais tarde uma das melhores ex-sogras da ruiva se curou de câncer, mas eram foram quase despejadas por não parar de rir juntas feito “crianças felizes”, desobedecendo a recomendação: o silêncio também é uma prece.
A morena tinha umas memórias impagáveis: contava que quando os ônibus levavam os moradores do bairro para o SBT, ela foi parar num programa em que o cantor de lambada Beto Barbosa rodopiou tanto ela, que saiu de lá meio alérgica ao ritmo. Bacana mesmo foi quando a colocaram num cenário de xícaras rodopiantes, ela levantava a mão para pedir para sair, que já estava meio zonza e uma espécie de animador da plateia (isso já existia naquela época?) mandava baterem palmas, até que ela “devolveu para natureza” no colo de alguma outra criança o lanchinho que ganhavam para participar das gravações. Podemos dizer que foi “um giro” sua incursão aos programas do rei do enlatado mexicano.
A morena dizia que se mataria antes de ficar velha ou se perdesse o pai. Quando ele de fato partiu, ela veio lá do outro lado do oceano, pois estava noutro país (finalmente com namorido à altura de sua beleza) e a ruiva cruzou a cidade depois de um plantão (esta por algum desses carmas inexplicáveis, não desistiu da profissão), pegou um táxi em que quase teve que pagar com favores sexuais, já que aquilo que estudaram não rende lá grandes salários, mas não conseguiram se falar: a amiga precisou ficar à base de tranquilizantes: a brincadeira do apego com o pai tinha um fundo de verdade.
Anos mais tarde, quando talvez este episódio tenha virado a dor que já não dói, mas a ferida volta e meia ameaça abrir, a morena lembrou da ruiva e perguntou quando esta tiraria férias. Ah... Se a ruiva tivesse tirado meia dúzia ao longo de treze anos trabalhando com comunicação devia ser muito. Tinha mais lugares trabalhados do que anos de vida. Tinha um fetiche de quando ficasse velha e tivesse netos, eles fariam apostas de que a avó não tinha feito o trabalho... Para depois descobrirem que sim, tinha trabalhado até como produtora musical de grupo de choro, por exemplo. Mas voltando à vaca fria: a morena faria um curso de espanhol com vivências culturais ou voluntárias num país da América Latina, enfim, uma espécie de intercâmbio vivencial-experiencial que era “a cara” da ruiva, que infelizmente não teve folga nem grana para acompanhar: estava num apostolado de fazer o escambo do jornalismo pelo teatro, que provocou o esvaziamento de sua poupança e o emergencial retorno à profissão de origem.
A ruiva ficou tão feliz com o retorno da morena e seu namorido holandês para o bairro em que estavam as raízes mais divertidas das duas. A morena até brincava que o companheiro se ressentia dela não ter estudado holandês, pois ele estava até arranhando o português. “Tinha que formar uma turma de interessados e fui a única que apareceu querendo aprender”, era sua divertida justificativa.
Mas não durou muito, que a morena deve ter ascendente ou lua em libra, para tamanho desapego e pouco enraizamento à terra natal. O namorido recebeu uma “proposta indecente” para trabalhar no Oriente Médio e lá se foram os dois, meio cidadãos do mundo, agora ativistas da causa animal, com muitas fotos de cachorrinho pela Internet para dar testemunho. Adivinhe quem acordou nostálgica hoje Paraguaia?

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