sábado, 14 de julho de 2012
Dom ou sina?
O coice que a gerou acha que devia fazer qualquer concurso: bilheteira do metrô é o mais recomendado. Mal sabe ele que o dom de escrever é também uma sina. Se a gente não escreve, morre. Volta e meia tem que mendigar papel e caneta em estabelecimentos públicos, pois 'está nascendo, está nascendo' um texto novo. Como ainda não sabe domar o cavalo selvagem da sua mente, dá à luz a vários começos de peça, livro, esquete, projeto... Mas depois a mente desgovernada quer correr para outro sonho. E ela é refém desta ânsia. Tudo que é novo parece mais provável de decolar e lá vai ela, navegar nas palavras e escrever até que o braço comece a doer. Fica entregue a este vício nas filas de banco. Ou como quando dorme numa casa nova e o corpo se recusa a descansar como em seu ninho original, escurinho e as anfitriãs ainda estão absorvidas pelo abraço de Morpheu, tem como companhia as palavras, rebeldes, urgentes, libertárias, tiranas... Elas ainda a carregam para onde quer que quiserem viajar. Quem escreve nunca está só. É uma companhia e tanto para uma filha única. E escrever é desnudar-se um pouco. Tem pouco menos de dois anos para tomar o timão desse navio e fazê-lo navegar por onde e quando ela quiser. Já deu deadline para esse dom ser domado por ela, não o contrário. Evoé!
Nostalgia de madrinha
Antes de ter afilhado, era impossível entender a saudade de mãe dos filhos pequenos. Ela só entendeu quando batizou o priminho. Se sentia falta dele bebê, imagine a mãe! E agora ainda que ele está "semi aborrescente", empurrando a madrinha da tentativa de abraço... Que facada no coração e ótimo método para "brochar" de ter filhos. Lembra de quando foi fazer cursinho pré batismo para cruzar o estado e passar pela cerimônia de derrubar água benta na cabecinha do bebê, que coitadinho, não pode dizer o que pensava a respeito na ocasião. Os ecumênicos têm razão, é praticamente uma violência contra a criança. O afilhado não tem noção do quanto a madrinha é enlouquecida por ele, pois já nem era mais católica, já estava ensaiando adotar a meditação budista como filosofia de vida. Mas a madrinha lembra do quanto posou sorridente para as fotos, achando o máximo bancar a segunda mãe diante de toda a comunidade católica da capital paranaense. E o tio com aquele ar de sossegado, tranquilo, o próprio catequista. E pensar que este primo é que introduziu a madrinha aos livros do Dalai Lama. Ela será eternamente grata por ter preenchido o coração com a presença arrebatadora do Mestre nas duas visitas Dele ao Brasil. Mas "voltando à vaca fria": a madrinha se deixou fotografar com o afilhado quando era tão pequeno e ela com tanta cara de quem acabou de acordar: tem quem desconfie que é mãe e filho. Só por amor a gente se deixa registrar tão entregue assim. Não é quase a segunda mãe? Só deu brinquedos educativos. No último reencontro mesmo, se recusou a ceder às paixões por DVDs de jogos violentos dele. Onde já se viu o afilhado ficar maior que a madrinha? A mãe deve é estar dando fermento pro dito cujo... Tem boas lembranças de rolarem no chão da casa da tia, forrada de pelos de gatos - benza Deus alergia que deu uma trégua na ocasião! Mas a mais saudosista mesmo foi levar o afilhado ao Sesc Vila Mariana e ao Parque da Aclimação, bairro do coração da madrinha, que adora um programinha cultural e no meio da natureza com as crianças da sua vida (no caso, os filhos das amigas também). Maldiz a distância entre as casas em que moram, pois caso estivessem mais próximos, seria mais presente. A madrinha não consegue explicar ao afillhado que as ausências são falta de grana e tempo de quem estuda, trabalha, procura empregos melhores. Faltam palavras. Até para quem escreve muito desde a 1a redação na 2a série, pois laço de família e de coração é de sangue, suor e lágrimas: o tio consolou bastante as crises de saudade da madrinha, que espera que ele faça as vezes de "duplo padrinho" - por estar mais próximo e ser tão amoroso quanto ela quer ser, mas nem sempre pode. Dizem que tem a saudade boa, que sabemos que vamos matar assim que rever a pessoa. E lá existe saudade boa? A madrinha tem lá suas dúvidas...
A tia da bronca...
À primeira vista, o título pode parecer que ela é assustadora. Bem, a sobrinha precisa confessar que na infância foi mesmo: era difícil diferenciar a loira da morena e esta última já "amoleceu" com os netos do casamento na terceira idade. Mas esta tia faz parte da família na qual o coice é uma marca registrada. Praticamente a prova de que nasceu no clã dos bravos de coração que se derrete fácil. Não acredita? Como a sobrinha jurava na infância "verdade, verdade absoluta". É aquela tia que de tempos em tempos - com periodicidade bem curta, vamos confessar - dá roupas e mais roupas para a sobrinha. E não é qualquer roupinha não: são coisas de grife ou desenhadas exclusivamente pela tia, que já conhece qual a sobrinha que topa qualquer parada no figurino, talvez por ser atriz, talvez por ter gosto meio diferenciado como a que gosta duma bronca. O japa mais desastrosamente marcante da vida da sabrinha uma vez viu o álbum de fotografias dos sogros e brincou: "o que a filha de vocês está fazendo na festa"? Era a tia. A cara da sobrinha, anos depois. Vamos combinar que a cada reencontro... A tia é o mestre de paciência da sobrinha, que está procurando no budismo desapegar, se aprimorar, ficar mais tranquila, o que talvez seja uma missão quase impossível nessa família. A tia está sempre de esporas afiadas, digamos assim. Às vezes é um jeito meio dificultoso de se mostrar que tem preocupação com a sobrinha meio distraída. Nas últimas vezes foi a reprimenda por estar sem blusa, passando frio. A sobrinha sempre esquece que ir para certas cidades do ABC acarreta uma passagem no "portal do tempo": sempre se enfrenta um frio digno de área de manancial. E agora a sobrinha também acha que está inconscientemente fazendo "treinamento para piriguete": as últimas levas de roupas foram de verão. Mas eram tão lindas! A sobrinha quer usar todas, ficar "fashion", talvez numa admiração meio camicase pela tia. A que gosta de dar uma bronca, quando encontrou a sobrinha bebê num horário de almoço em que tinha ido comer na avó, ficou assim meio encantada, meio hipnotizada. Dizem que a sobrinha parecia um bebê Johnson´s. O fato é que a tia não almoçou naquele dia em que a sobrinha ainda tinha meses. E hoje em dia a tia pratica a metodologia da mestre irada Lama Tséring, do budismo tibetano, que também puxa as orelhas dos discípulos. Como é fácil esquecer que é para o nosso bem! O último episódio foi devido ao fato que a sobrinha já está em sua versão 3.4 e é a única mulher da face da terra que ainda não usa anti idade. Como explicar para a tia que não sabe que horas passar isso, por ainda se ver às voltas com ácido de espinha à noite? A tia é mulher de um argumento só: onde já se viu, para ela, a rainha das lipos, esse relaxo todo, nem parece da família... E para contar que está esperando os rendimentos mensais darem uma melhorada, que há dois anos eles estacionaram aquém do piso de sua profissão? Vai dizer que ela é pão dura, que tem a quem puxar... Dizer que "muquirana que se preze" não toma calote de ex room mate é letra morta. Mas e quando procurar por um trabalho decente ocupa todo seu tempo extra fora das várzeas trabalhistas, o que também dificulta ir à dermatologista e solicitar anti idade manipulado personalizado? Como diria a ex room mate "forget Margareth", argumentará à exaustão que não pode ser mulher assim, onde já se viu... Muito ingrato argumentar com libriana crítica bem sucedida na vida. É outro universo, apresentar para que, se à "bronca descontrol" só interessa puxar a orelha? Por essas razões que só os laços de sangue explicam, a sobrinha segue gostando, visitando e tomando coice da tia. Como diria a avó, será que era melhor gostar menos, para sofrermos menos também? Mistério...
quarta-feira, 4 de julho de 2012
Saudosismo repentino
Não foi à primeira vista que já nos tornamos amigas de fé, irmãs camaradas. No finado pré, mas informal, sem tanta obrigação de alfabetizar naquela época. A ruivinha, na ocasião ainda mais quieta, chegou um dia e encontrou as amiguinhas com uma morena de cabelo quilométrico, que renderia anos mais tarde o apelido Paraguaia, dado pelo pai da menos espoleta, por inspiração da cantora Perla. Foi quase “tocada” do circulozinho de conversa pela forasteira: "Você não é minha amiga!"
"Você é que não é minha. Já estava com a amizade delas antes de você chegar". – a ruiva não se fez de rogada e devolveu na mesma facilidade infantil de arrumar justificativa para tudo.
"Ah... Então você é minha amiga também". finalizou a morena.
"Você é que não é minha. Já estava com a amizade delas antes de você chegar". – a ruiva não se fez de rogada e devolveu na mesma facilidade infantil de arrumar justificativa para tudo.
"Ah... Então você é minha amiga também". finalizou a morena.
E pensar que anos mais tarde, continuariam amigas. Além do pré, fariam ainda a faculdade, escolhida estrategicamente: a ruiva quando viajava com os pais apontava o prédio da Abril e dizia: "Vou trabalhar aqui". Seus pais queriam saber "Mas o que você vai fazer aí menina?" Ainda não sabia o nome, mas já previa: "Escrever na revista".
Com a morena foi diferente: ela acompanhava com a mãe o noticiário da TV para saber das greves das montadoras e ter alguma informação do pai preso na fábrica:"Mãe quando eu crescer vou fazer igual essa moça aí do microfone"!
Quem diria que ela viraria marqueteira e até aula de educação física daria. Mas fizeram jornalismo juntas. E um dos estágios mais divertidos que a ruiva faria mais tarde seria pelas mãos da morena, numa rádio FM, em que ganharia ingresso para um show do Djavan e esnobaria as duplas sertanejas que visitavam a outra emissora do grupo, pois fazia questão de não reconhecer quem cantava “uma deusa, uma louca, uma feiticeira”.
A ruiva brincava que quando estavam com pressa de atravessar a rua, podiam por a morena para parar o trânsito e agilizar a travessia. Ganhavam caronas divertidas para o cursinho: do pai, que tinha um alarme “que nem o dono o automóvel conseguia tirá-lo do lugar, imagine o bandido”. É, tiveram que empurrar carro juntas.
Melhor seria na época da faculdade, em que um colega impagável as levava com sua picape, aquele carro conhecido como “marmita” em que você só carrega quem come e as duas iam no bagageiro, se cobrindo com uma capa de couro que protegia a parte traseira, pois tinham que “atravessar o portal do tempo”, de São Paulo para “São Bernóia”, onde faz um frio digno de área de manancial – será pela presença da Billings lá?
Brincavam que a morena enxergava fundo nos homens, pois sempre achava os baixinhos, feios e pobres uma graça. Sei lá, para ela inteligência e bom humor eram mais que afrodisíacos.
Tentaram frequentar juntas o centro espírita local, extremamente procurado por pessoas de todas as fés, onde anos mais tarde uma das melhores ex-sogras da ruiva se curou de câncer, mas eram foram quase despejadas por não parar de rir juntas feito “crianças felizes”, desobedecendo a recomendação: o silêncio também é uma prece.
A morena tinha umas memórias impagáveis: contava que quando os ônibus levavam os moradores do bairro para o SBT, ela foi parar num programa em que o cantor de lambada Beto Barbosa rodopiou tanto ela, que saiu de lá meio alérgica ao ritmo. Bacana mesmo foi quando a colocaram num cenário de xícaras rodopiantes, ela levantava a mão para pedir para sair, que já estava meio zonza e uma espécie de animador da plateia (isso já existia naquela época?) mandava baterem palmas, até que ela “devolveu para natureza” no colo de alguma outra criança o lanchinho que ganhavam para participar das gravações. Podemos dizer que foi “um giro” sua incursão aos programas do rei do enlatado mexicano.
A morena dizia que se mataria antes de ficar velha ou se perdesse o pai. Quando ele de fato partiu, ela veio lá do outro lado do oceano, pois estava noutro país (finalmente com namorido à altura de sua beleza) e a ruiva cruzou a cidade depois de um plantão (esta por algum desses carmas inexplicáveis, não desistiu da profissão), pegou um táxi em que quase teve que pagar com favores sexuais, já que aquilo que estudaram não rende lá grandes salários, mas não conseguiram se falar: a amiga precisou ficar à base de tranquilizantes: a brincadeira do apego com o pai tinha um fundo de verdade.
Anos mais tarde, quando talvez este episódio tenha virado a dor que já não dói, mas a ferida volta e meia ameaça abrir, a morena lembrou da ruiva e perguntou quando esta tiraria férias. Ah... Se a ruiva tivesse tirado meia dúzia ao longo de treze anos trabalhando com comunicação devia ser muito. Tinha mais lugares trabalhados do que anos de vida. Tinha um fetiche de quando ficasse velha e tivesse netos, eles fariam apostas de que a avó não tinha feito o trabalho... Para depois descobrirem que sim, tinha trabalhado até como produtora musical de grupo de choro, por exemplo. Mas voltando à vaca fria: a morena faria um curso de espanhol com vivências culturais ou voluntárias num país da América Latina, enfim, uma espécie de intercâmbio vivencial-experiencial que era “a cara” da ruiva, que infelizmente não teve folga nem grana para acompanhar: estava num apostolado de fazer o escambo do jornalismo pelo teatro, que provocou o esvaziamento de sua poupança e o emergencial retorno à profissão de origem.
A ruiva ficou tão feliz com o retorno da morena e seu namorido holandês para o bairro em que estavam as raízes mais divertidas das duas. A morena até brincava que o companheiro se ressentia dela não ter estudado holandês, pois ele estava até arranhando o português. “Tinha que formar uma turma de interessados e fui a única que apareceu querendo aprender”, era sua divertida justificativa.
Mas não durou muito, que a morena deve ter ascendente ou lua em libra, para tamanho desapego e pouco enraizamento à terra natal. O namorido recebeu uma “proposta indecente” para trabalhar no Oriente Médio e lá se foram os dois, meio cidadãos do mundo, agora ativistas da causa animal, com muitas fotos de cachorrinho pela Internet para dar testemunho. Adivinhe quem acordou nostálgica hoje Paraguaia?
segunda-feira, 2 de julho de 2012
Tempo de Jabuticabas
A avó guardava potinhos de iogurte para ela brincar quando viesse visitá-la de outro estado. Era uma viagem comprida, impossível de acontecer com a frequência que famílias saudosistas gostariam de fazer. Por isso, a cada entrada no antigo fusca laranja – ou seria branquinho? Estava ficando daltônica como o pai? – era uma festa digna do clima “vamos pegar a estrada e sair por aí”.
Os pais ainda tinham pique para estas looongas travessias quando era pequena. Numa ocasião em que o carro os deixou na mão, foram do ABC paulista até a rodoviária do Tietê de condução pública – sempre uma lástima, desde aquela época – e enfrentaram água pelos joelhos, depois de São Pedro lavar o céu todinho. A filha, nos ombros do pai por ser pequena demais para a jornada água adentro, comemorava balançando os pezinhos: “não molhei meus sapatinhos”!
A avó era um capítulo à parte, tamanha bondade. Antes, muito antes da neta mergulhar na única religiosidade que fazia parecer ter voltado ao útero – o budismo – já tinha umas práticas que pareciam ser provindas de meditação de outra encarnação: colocava água em tampinhas de refrigerante para as baratas, lá fora, “pois ninguém pensava nelas mesmo”. Porquice? Estratégico! Elas se acostumavam aos bons tratos e ficavam fora de casa. Mais budista, impossível: respeito a TODAS as vidas.
As casas, carros e cachorros de lá tinham uma cor específica: a da cidade. O cheiro era único também: mato, café e terra vermelha. Uma lembrança eterna, de encher os olhos e confirmar o o ensinamento do mestre de contar histórias: “a memória olfativa é a mais rápida”. Claro que para comprovar que avó é mãe com açúcar, tinha o bobajitos que o paladar nunca mais encontrou igual: bolinho de chuva.
Avó tinha ainda outro gosto específico: tubaína. A neta encontrou adulta até um bar com este nome para comemorar aniversário, mas como alertava um discípulo a um rei meio faminto e nostálgico numa história zen: “não posso fazer para você a comida que seus pais te davam – nunca poderei recriar o aconchego daquela época, a forte presença deles, o amor que dá outros paladares para nossa infância”.
Avó mimava, mas não muito. Lembra de uma boneca, a Dorinha. E ainda tem foto com as primas na varanda de casa, com a caixa atrás e as três dando aquelas risadas que só os 4, 5 anos possibilitam.
Casa... Para quem vinha de apartamento, aquelas férias eram um idílio. Quintal. Grama na qual ela sempre quis pisar, mas a mãe sempre proibia: “vai lavar o pé”. Os banhos no tanque da lavanderia. O cachorro ciumento, que numa noite de distração familiar, nhac! Tentou morder o pé dela, mas deve ter se saído mal, pois o mesmo era protegido por bota ortopédica.
O quintal. A incômoda casinha de fazer necessidades. O quartinho do tio, que levava qualquer “tranqueira” que encontrasse para estocar, pois jurava que “um dia ainda precisaria daquilo”. Um memorial misterioso para crianças, com brinquedos, caixinhas e outras traquitanas às quais tínhamos acesso controlado e supervisionado. Praticamente um museu do que nunca se usou, mas por algum “toc” não diagnosticado na época, foi armazenado e mostrado para as crianças como relíquia, provavelmente com uma história e tanto para justificar a manutenção daquele objeto ali. Os olhos curiosos das crianças nunca esqueceram tudo o que não podiam tocar, mas guardaram no coração histórias e mais histórias de um tio meio caduco, talvez gagá, porém poeta de primeira linha.
As frutas. Colhidas no pé. Com sabor que a cidade nunca proporcionaria, que só o transporte e negociação com os “atravessadores” já colocava nas mesmas um sabor de paga injusta. E o mais marcante: o tempo de jabuticabas. Não podíamos nos fartar muito delas, embora fossem irresistíveis: elas desandavam o intestino.
A boca melada que voltada para a varanda, desta vez para ouvir as histórias do avô, também poeta, meio historiador, que levantava a árvore genealógica de toda a família, encontrava amigos e familiares que não via há anos pelo auxílio à lista da época e ainda escrevia as memórias dos pioneiros da região, que mais tarde ganhariam ruas com seus nomes.
A rede. Sabor de velocidade, altura, que a neta nunca teve coragem de enfrentar em parque de diversões, mas ali parecia tão aconchegante e seguro no colo do avô, ao lado do pai, pertinho da mãe e da avó.
A avó que anos depois provocou uma viagem misteriosa e meio turbulenta, para uma despedida não prevista e indesejada. Os adultos tentaram encontrar os potinhos de “danoninho” coloridos, com os quais a neta brincava para distraí-la, que numa sabedoriazinha mirim concluiu:
-Só minha avó sabia onde estava!
A semente. A descoberta de que, anos mais tarde, só poderia ter sido concebida nestas terras, de fartura, leite quente, café cheiroso, toalhas xadrez, primas meio lendárias com seus muitos gatos e pais super protetores, passarinhos na parede e casas de madeira, de um colorido que tentava driblar a terra vermelha.
De onde vem a música interna?
Limpa com a mão o suor da testa. Estava percorrendo todo o bairro com seus projetos, oferecendo parceria profissional em todo espaço com cara de ateliê, aspirante a centro cultural ou pretensa escola artística do bairro. Naquela região metida a descolada, não eram poucos. De repente se depara com uma casinha pequena, mas com diversos objetos sonoros em sua entrada, além de divertidos convites: “toque que desestressa”.
Se animou. Tocou a campainha diferente já pensando na abordagem: contar onde estudou, os dez anos de prática – não importa se quase sempre realizada “por amor”... Era hora de fazer valer tanta vivência. E o talento quase ingrato faria ganhar dinheiro “e é pra já”... Ouviu outros novos sons vindo de dentro. “Ah sim, demonstrar o quanto suas ideias casam com a música e...”
A porta se abriu. Parou de raciocinar e entrou noutro tempo, em outro espaço quando viu o provável proprietário do lugar, pelo tamanho modesto em que trabalhava. Como nos filmes que julgava água com açúcar, começou a ouvir uma trilha sonora criada especialmente para aquele momento, de súbita paixão à primeira vista – justo ela, que não acreditava nisso!
“Meu Deus, ele mexe a boca, mas não ouço o que fala”. A música não era do espaço dele, vinha de algum lugar dentro dela mesma, fazia com que os carros da rua passassem sem barulho e não tivesse a mais vaga ideia do que aqueles olhos claros e sorriso aberto diziam no momento.
Nem era assim... Nenhum padrão típico de beleza, que sempre foi avessa aos obviamente belos, via uma inteligência aqui, um bom humor acolá, um talento irresistível... Mas o que é que encantava agora, ela que tinha um estilo tão “cabeçóide” de se apaixonar e agora não conseguia escutar mais nada, só aquela música nunca antes ouvida, criada para aquele instante, pela sua própria percepção?
“Senhor, acho que ele perguntou alguma coisa, parece esperar resposta minha e me sinto como os personagens do Snoopy ouvindo a professora do Charlie Brown: ‘bló bló bló bló bló bló’”. Saiu pela tangente, “se fingiu de morta” para a questão dele e apresentou seu projeto, fez uma proposta casada com música, pois desconfiava que o som pudesse vir de dentro do espaço dele e tinha uma clave de sol na entrada, quando ainda estava na calçada, imune àquele turbilhão de sentimentos e sensações desconexos, totalmente novos.
Apesar do que foi dito provavelmente não ser o que ele esperava, se animou mesmo assim e convidou para conhecer seu espaço – ao menos era o que indicava o corpo dele, pois a música que ela não parava de ouvir não tinha dado trégua até então. Aceitou de bate pronto – se ele chamasse para ir até a Antártida, embarcaria para depois lembrar “putz... Não tenho roupa para este frio”...
Só lá dentro, quando ele foi mostrar como fazia música do que menos se esperava – como uma rampa sonora de madeira com bolhinhas de gude e água, é que seus sons internos deram espaço às demonstrações de como ele fazia canções de materiais cotidianos – e eram belas! Ela mesmo tinha cismado que o metrô na Sumaré, indo ou voltando, não tinha bem certeza, tinha um começo de música do Cazuza – e ela nem tocava nada, só campainha!
Apresentou instrumentos criados a partir de sucata, material de construção, o impensável. Alguns ela parecia ter visto em imagens indígenas ou de tribos africanas, não tinha muito bem certeza, podia ser alguma memória ancestral. Ele convidou para alguma apresentação, era ali perto, ela morava na região, claro, seria um prazer.
Quando se despediram... Ele tinha um cheiro bom. Não era perfume, era pele. Era cheiro de maresia. Estavam na cidade, como ele podia ter cheiro de praia? Tinha um quê de mato molhado também. E qualquer coisa de terra vermelha, café. Gozado! Todos aromas que remetiam às memórias mais infantis e felizes dela.
Na calçada, já voltando para casa, ouvindo um pouco da música anterior, só que mais baixo, caiu uma ficha que até então estava em amnésia dentro dela: era comprometida, no modelo fiel e o som dele rolaria num sábado. Não tinha a menor ideia do que fazer. Chamar quem viva com ela para cima e para baixo? Chutar tudo para o alto? Nem sabia se o artista pelo qual tinha se encantado tinha alguém, se também tinha ouvido a música que ela escutava...
“Na hora em que o mundo virar de ponta cabeça, mergulhe num café com avelã, chocolate, espuma de leite, enfim aquele que seu pai considerava ‘praticamente uma torta’” – era a recomendação do seu cabeleireiro meio psicólogo. Como se sentia meio virada do avesso, parou num desses cafés em que praticamente tem que “adquirir participação societária” por uma mísera xicarazinha, mas o momento pedia. Depois de deixar a bebida “para sempre em sua cintura” decidiria o que fazer. O momento pedia reflexão aromática. Quem sabe aquele cheiro da infância não espantava aquela musicazinha sem fim desde que cruzou o olhar daquele artista?
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