Havia uma relação ali alérgica a rótulos. De tardes dos dois
rindo em caminhadas compridas para fazer inveja a mineiro que considera
“qualquer coisa menos que 450 quilômetro
pertim”. Almoços meio batizados de choro com chateação de amiga e consolo
do parceiro. Tardes “gogando” e mapeando como corrigir escolha enganada de
bairro, agora que o concurso a chamava para trabalhar do outro lado da cidade.
Dum apoio amplo, geral e irrestrito à mudança de área dela. De noites e tardes
cozinhando a quatro mãos, usando a colocação do avental como desculpa para se
abraçar e do preparo coletivo diluir qualquer assinatura individual nos pratos.
Dela gastando instinto maternal com a “gachorra” dele, a única que atendia
chamado pelo nome, se esparramava na barriga de ambos, ficava horas no colo de
barriga para cima recebendo cafuné e respondia conversa miando sem cansar numa
conversa que “mistura idiomas”. De filmes e peças em dupla para rir, chorar, se
divertir, emocionar ou ficar debatendo nos cafés sem pressa depois. Dele brecar
o desastre e a distração dela a cada buraco, cocô na calçada ou farol que se
abria, feito irmão mais velho. De contarem ou lerem histórias um para o outro
como quando eram menores e pediam “conta mais”! Ou quando ouviam “era uma vez”
e ficavam de olhos vidrados, ainda que “semi novos” para manter o encanto das
fábulas por muito tempo. De irem juntos ao hospital e ele brigar com a má
vontade da médica na hora de trocar receita, bem quando ela estava frágil
demais para bater boca com a doutora que a deixava falando sozinha. De
meditarem com a “gachorra” entre eles, tão desesperada por comida quanto a
gastrite dela. Dele segurar a mão da companheira de fim de semana quando a
amiga chorava na hora de ia dormir, com algum mal estar emocional vindo à toa.
Deles proseando e navegando de cuecas samba canção pela casa dele. De filme
dividido no sofá, com ele roncando da metade em diante. Dela oferecendo chá
depois do estômago dele reclamar por ter sucumbido ao pecado da gula. Da
dorzinha dela receber oferta de remédio. De chá natureba dividido. Dele a empurrar para a sombra percebendo quando
o sol a castigava nas longas caminhadas. De limparem a pia um do outro. De
compartilhar espera em rodoviária cheia na véspera de feriado. Dela aproveitar
para além de diminuir a água ralo abaixo na faxina periódica dele, ainda
refrescar o calor que a persegue. Dela caçar shampoo específico para o cabelo
dele. Dele tirar dúvidas de barba e sobrancelha com ela. Dele achar escova
dental pra ajudar a cabeça oca da amiga que “faz camping” na sua casa e esquece
de carregar o kit básico. Ele palpita para ela não emendar uma história amorosa
na outra e não sobrecarregar a alma de emoções de difícil processamento. Ela
tenta convencer que se diverte até quando os ensaios de paixão desandam, mas às
vezes não disfarça quando uma lágrima escapa furtiva. A dupla recolhendo rastro
de turista descuidado em trilha no meio do mato, consegue rir até em conversa
política, por mais vexatória que ela ande hoje em dia. Ela banca a cupido com
ele, que prefere deixar que a existência faça sua parte. Ele formiguinha de tão
fã de doce, que às vezes ela limpa a boca dele do açúcar que ficou para trás.
Ela maluca por “bobajitos” salgados. Com interlúdios lights entre uma “enfiada
de pé na jaca” e outra. Uma ansiosa, um tranquilo. Um caseiro, uma irriquieta.
Uma tagarela, um tímido. Uma estupidamente carinhosa, um introspectivo. E nos
derrapões das escancaradas diferenças de temperamento vão modelando um sonho “quase
realidade” de mochilão em conjunto. A ponto de amigos em comum, consciente ou
inconsciente, terem ciúme ou inveja branca de tanta intimidade brotando feito
água nascente, dessas ansiadas que nem conseguem se conter. Qualquer rótulo
descolaria rapidinho, de tanto lugar incomum que compõe esse amor de irmãos
reencontrados depois de encarnações se procurando. Perguntando aqui e ali o que
são, como se definem, numa ciumeira e curiosidade fora de lugar que brota
constrangedoramente sem esperar. Numa madrugada de prosa comprida ao fone com a
prima, Pilar define o que é de Acir: “desnamorada”. E julga o amigo sua alma
gêmea neutra. Parceria bonita, fofa e triste ao mesmo tempo. Como todo amor que
fecunda umas saudades “de quando em vez”.
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