terça-feira, 15 de novembro de 2011

Onde você esteve toda minha vida?

O trabalho, imprevisivelmente, acabara antes do imaginado. A chefe havia deixado a passagem de volta em aberto, se não estivesse “sobrando um resto de mês no fim do salário” poderia conhecer a cidade, idílica à altura de sua fama. Olhou o celular, o sinal caía e voltava, num roaming de quinta categoria. E para quem já estava apertada, melhor não arriscar aumentar a conta de telefone.  Usou a verba de viagem da empresa e comprou um cartão telefônico. Ligou para casa.
- Terminou?
- Tudo acabado. E a praia só rindo para mim, raiva da falta de grana!
- Olha, vai naquele albergue da juventude que a vizinha falou. Entrou um trabalho a mais, põe no cartão que mês que vem te dou.
Resolveu aproveitar a generosidade marital e passar um fim de semana colocando a cabeça num estado mais relaxado. O albergue foi uma ótima maneira de “sair do País ficando nele”: tinha mais gringo do que qualquer outra coisa. Passou uma manhã e tarde de sábados muito bem sozinha obrigada: caminhou na beira d´água, tomou água de coco, comeu peixe, deixou as coisas no quiosque, deu um mergulho. Cochilou na rede da va randa do quarto em que estava meio à toa, quando a holandesa do seu quarto chamou para ouvir o trio que fazia uma espécie de happy hour no restaurante em que todos cozinhavam.
A música era boa, bem praiana, gingado meio malandro, a cara do local. Até que seu olhar bateu de frente com o de um gringo que ainda não tinham apresentado. Bateu e ficou. Seus poros meio histéricos é que sopravam: “ele não é daqui”, pois as feições eram bem regionais. Ele também não se fez de rogado e o olhar ficou ali, meio que reencontrando o seu propositalmente. A música? Tinha alguma coisa tocando? Começou a ouvir o coração, nem devagar e nem disparado, mas presente e dando outro gosto à boca, que obrigava a lamber os próprios lábios periódica e rapidamente. As outras pessoas ficaram meio que embotadas, como quando desfocamos o segundo plano de propósito nas fotografias. Ele começou a se aproximar. Parecia que vinha em câmera lenta e qualquer vestígio de pressa tinha evaporado: tinha ganho todo o tempo do mundo de repente.
Quando ele chegou. E tocou o braço dela. Aí é que não viu mais nada em volta mesmo. Sentiu uma familiaridade inexplicável. Era como um novo antigo amigo. O cheiro dele era meio amadeirado e não parecia perfume. Era alemão, embora tivesse descendência turca e todos os traços exóticos de sua ancestralidade. Cabelo comprido, negro como os olhos, a barba e as sobrancelhas. A pele tinha o tom de um moreno meio madeira, que ele parecia exalar. E devia ser mesmo algum reencontro quase ancestral: foi a noite inteira de conversa: política, ideologicamente esquerdistas, os dois, literatura, apaixonados por poesia ambos, música, fãs dos sons de todos os povos, meio cidadãos do mundo nas notas musicais.
Até que ele citou Rainer Maria Rilke como um autor favorito e começaram a completar frases favoritas de suas referências em comum. O papo foi para a beira da praia, próxima ao albergue e enveredou por uma caminhada molhando os pés e rindo de tantas coincidêndias em comum. Até que não saberiam dizer quem, onde, que horas, por qual razão, como... Se esbarraram mais desavisadamente. E riram de um modo mais solto. Se olharam de maneira mais urgente. E não encontraram outras semelhanças para trocar naquele instante. Se embebedaram de seus olhares durante horas, numa inconsciência de que aquilo não se repetiria nunca mais. E se tocaram. Olharam para suas mãos ainda meio surpresos. E se aconchegaram, mas quase ainda ariscos. Estavam longe de onde tinham se conhecido. Não devia ser mais a mesma praia, pois era mais deserta e silenciosa. E ali, ela descobriu que é possível fazer amor numa única noite. E ali, ele saberia que cada impressão dela marcaria sua pele a fogo quase como tentativa de domar boi bravo.
Voltaram também a pé com a mesma falta de urgência de quando se conheceram. Ela achou que ele tinha um gosto doce, do outro lado do oceano. Ele sentiu sua pele meio gosto de mar. Viram o sol nascer e carregaram os sapatos nas mãos. Voltaram para a infância chutando água um no outro. Pararam para tomar café num quiosque qualquer. Se esqueceram olhando as ondas. E caminharam mais um pouco. Já sem brincar com a água. Se tocaram com uma febre de temor da perda. Mergulharam. E se beberam. Criaram um abraço próprio de quem antevê caminhos diametralmente opostos. E comeram peixe. E voltaram num ritmo tão tranquilo, de quem não quer que o dia acabe. Foi um dia de silêncios preenchidos.
Até chegarem no albergue, fim da tarde. E a holandesa chegou esbaforida avisando da ligação do marido. Percebeu que ela e o alemão não sabiam nem o que tinha nascido e já tinha que ser morto e se afastou.
- Você não disse que...
-Você não vai acreditar, mas esqueci.
- Vocês estão...em crise?
- Não parecíamos.
- Eu tenho uma filha.
- Você também não...
-Mas não sou casado.
- De qualquer forma...
- Não nos prometemos nada.
-E poderíamos?
-Não consigo ficar longe dela.
-Também tenho uma história antiga quase indissolúvel.
- Isso já tinha...?
- Nunca.
- Você parte...
- Amanhã. E você volta...
- Depois de amanhã.
- E agora nós...
Os dois se olharam um sem fim meio quietos, meio mareados, meio sufocados, meio querendo parar o tempo, entender os caminhos que se enveredam e têm que se desvencilhar, lembrando cada palmo de toque, cada lambida de urgência, cada abraço de resvalar no juízo, se vendo como quem quer marcar tudo em tinta interior indelével, com gosto de choro na boca e olhar querendo marear, de respiração meio suspensa e entrecortada.
Se abraçaram. Um aperto de consolidação do que foi e não será, do que não pode e aconteceu, do que não se esperou e viveu, do que surpreendeu e deslocou tudo, do que se permitiu e se reverenciou, do que despertou e desembotou, do que ampliou e remexeu, do que virou do avesso e suspendeu as horas, do que remodelou o ritmo e virou de ponta cabeça, do que ofuscou e sacudiu a poeira, do que apagou o ontem e recriou o agora. E chorararam. Ainda não sabiam se de saudade antecipada, de revolta, de dor entrecortada ou anunciação do fim inevitável de dois mundos inconciliáveis.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Nas ladeiras de Olinda

Aquele som invadia peito adentro e ditava o compasso do coração. Se sentia mais brasileira que nunca. Desconfiava não ter gingado até por os pés em Olinda, naquele Carnaval de molhar os olhos e a alma. O ritmo veio ao encontro dos seus pés, do seu corpo como criança que corre para o pai, mais natural que o encontro das águas.
Com os bonecos voltava à infância, arregalava os olhos e quase queria correr quando eles passavam, tinha vontade de bater foto de um por um. Estava pior que turista japonês. O que quebrou a magia do seu primeiro Carnaval em Olinda eram os puxões de orelha do namorido meio garoto enxaqueca, nada fã destas brasilidades carnavalescas:
- Outro clique? Estes bonecos são todos iguais.
Não eram. Aquele Carnaval tinha um quê daqueles que a avó, a mãe contavam, uma tentativa de reter em algum detalhe a inocência quase perdida desta tradicional e importante festa pagã, um alegrar-se à toa, um entregar-se graciosamente à serpentina.
Deixou a máquina meio esquecida pendurada à fantasia para ver o bloco passar e com ele se encantar, como quem se desvirgina de Carnaval Pernambucano. Ouvia um trecho de nada, o coração gravava e já saía cantando.
Soltaram as mãos por uma fração de segundo e ele surgiu. O cara que fez a trilha sonora mudar, a passagem do bloco se tornar mais lenta, a briga com o namorido menos chata, o calor mais tolerável. O momento meio curta metragem, fora do tempo espaço. Os olhares se interceptaram como policiais que fazem vistoria desconfiados.
Ele veio roubar um beijo. E que beijo! Esqueceu câmera, bonecos, suor, bolha nos pés, sede, ritmo batendo forte dentro do peito, fantasia desmontando com o calor, fome, aperto no meio do bloco...
E namorido.
- Ei! - ouviu dele, de volta à realidade e tomou uma sacudida.
O corte foi brusco e o pernambucano de sonho tratou de sumir na multidão.
Era mais um agonizar de um amor que vivia em convulsão. Talvez por isso o namorido facilitou a perda dos caros acessórios fotográficos.
Mas também era um provocar de revoada de borboletas apaixonadas no estômago. E uma bem vinda confirmação de que estava mais viva que nunca.